O livre-arbítrio é um dos temas mais debatidos da humanidade. Somos de fato livres para fazermos nossas escolhas ou apenas percorremos uma teia do destino projetada especificamente para nós? Esse debate filosófico é um dos principais alicerces de Lies of P, jogo do estúdio coreano Round8 e com publicação assinada pela Neowiz.
Como o nome já entrega, o game é baseado em um livro escrito por Carlo Collodi (ou Lorenzini). O nome do livro? As Aventuras de Pinóquio. Além do conto original como fonte de inspiração, Lies of P usa como base outra obra conhecida, principalmente por parte dos jogadores: Bloodborne. Muito da semelhança se dá por conta da estética vitoriana que vimos no jogo da FromSoftware. Essa estética é bem similar à Belle Époque, era em que Lies of P é ambientado.
Agora você deve estar se perguntando: Lies of P tem identidade o suficiente para se destacar em um dos gêneros mais concorridos da indústria? Ou o projeto é só mais uma cópia sem alma que aspira ter a mesma relevância que os títulos da From? Saiba se Lies of P vale a pena em nosso review!
Rebelião industrial
Mentir ou não mentir? Eis a questão! Como o nome entrega, Lies of P é protagonizado por Pinóquio, um títere especial criado por Geppetto. Diferente da maioria esmagadora dos seus “irmãos”, Pinóquio é capaz de quebrar a quarta lei do Grande Comando dos títeres: ele consegue mentir.
As mentiras são um componente importantíssimo no game. Boa parte dos sobreviventes humanos são Espreitadores, guardas de elite que trabalham pros Alquimistas ou pras famílias de Krat e eles são hostis em relação aos títeres. Logo, caso você seja identificado (não mentir), pode ir se preparando para um embate. Os poucos sobreviventes de Krat que não são soldados vão te pedir favores e, cabe a você tomar atitudes humanas quanto às expectativas desses sobreviventes ou agir como um ser robótico. Essas escolhas alteram drasticamente o final do game e as recompensas obtidas ao concluir tarefas.
Nossa jornada começa com o jovem indo atrás de seu pai em meio ao caos em que Krat se encontra. Antes pacíficos e criados para serem escravos, os títeres deram defeito e começaram a atacar os humanos. Esse episódio é chamado de Frenesi pelos poucos sobreviventes da rebelião. A lore de Lies of P é rica e intrigante. Além da história ser contada da maneira tradicional, sem os subjetivismos que outros jogos do gênero adoram ter, encontramos diversos colecionáveis que explicam em detalhes o que aconteceu com cada bairro e entregam informações sobre as diferentes organizações que existem em Krat. Além do Frenesi, uma doença cruel chamada de Petrificação assola a cidade. Ver os desdobramentos dos eventos e como eles se conectam é maravilhoso!
Como mencionei anteriormente, o game é ambientado durante a Belle Époque. As características do período podem ser facilmente percebidas em cada detalhe da narrativa e level design. As construções pomposas, um processo de industrialização intenso, a explosão de poesias e peças que pregam a liberdade. Os devs da Round8 estudaram com afinco o período e o transportaram de maneira magistral pra Lies of P. Isso resulta em um game cheio de identidade e com uma lore marcante que mantém os jogadores altamente engajados com o decorrer dos eventos.
Além da história principal, temos diversas narrativas secundárias que se desenvolvem de maneira simultânea. O Hotel de Krat, nosso QG, pode ser povoado por personagens secundários que auxiliam Pinóquio em sua aventura. Cada personagem tem uma história individual que precisa ser desenvolvida e isso contribuiu para que o jogador estabeleça um vínculo interessantíssimo com cada habitante da cidade. Além disso, temos diversas referências à obras e personagens clássicos como Dorian Gray e Sherlock Holmes.
Ao todo, Lies of P conta com 3 finais distintos. A primeira campanha, por ter um caráter mais “introdutório”, dura cerca de 30 horas. A duração pode ser extendida caso você queira completar todas as missões secundárias e obter todos os itens de cada mapa. Vale destacar que é necessário zerar o jogo mais de uma vez para obter o troféu de platina.
Agente da Verdade
Em busca da verdade, Pinóquio conta com um arsenal interessantíssimo ao seu dispor. Chaves de fenda gigantescas, adagas de fogo, machado de bombeiro, lança envenenada.. A variedade de armas em Lies of P impressiona e, pra melhorar ainda mais as coisas, temos um sistema bem rico de personalização de armamentos.
Cada arma presente no game é composta por duas partes: uma lâmina e uma empunhadura. Você pode mesclar esses equipamentos, criando uma combinação personalizada. Por que isso importa? Cada equipamento possui uma habilidade especial chamada de Fábulas. Essas Fábulas são ativadas através de um recurso chamado de Legião, conquistado ao golpear inimigos. Através do sistema de personalização, você consegue combinar a lâmina que possui sua fábula predileta com uma empunhadura que apresente a fábula que mais te agrada.
Para tornar o sistema ainda mais completo, podemos inserir manivelas em cada arma, mudando as escalas de atributo. De maneira idêntica aos Souls, os armamentos em Lies of P escalam com os atributos. Você está usando uma build de Motricidade (força) e gostou de um punhal que escala com Técnica? Basta adicionar uma Manivela de Motricidade para mudar com qual atributo a arma vai escalar. Vale destacar que a manivela pode ser removida depois. Esse sistema de personalização gera dezenas de combinações possíveis que garantem um grau maior de liberdade a quem joga. Monte sua própria build e seja feliz!
Outro componente único de Lies of P diz respeito aos braços de legionário. Um dos braços de Pinóquio é um braço mecânico que pode ser trocado à medida que fabricamos novos tipos. Quer transformar seu braço em um lança-chamas ou um canhão de raios? Dá pra fazer. Um defeito no que diz respeito a isso é que os materiais de melhorias dos braços são bem escassos, logo, não existe muito espaço para experimentação aqui. O objeto também serve como um reparador de armas e um infusor. Ao longo da trama conseguimos habilitar um item chamado de Rebolo que garante um efeito elemental provisório à nossa arma.
Cada tipo de inimigo é fraco para algum elemento e, explorar bem essa fraqueza trivializa a dificuldade de Lies of P. Por exemplo, a maior parte dos títeres são fracos contra eletricidade. Existe uma maça de eletricidade (que é igualzinha à Tonitrus) que basicamente atropela todo e qualquer ser robótico do game. No caso dos seres com a Petrificação, fogo é sempre uma excelente escolha.
Lies of P é um jogo que premia bastante a agressividade. A esquiva do personagem não é tão responsiva e precisa ser aprimorada através dos Órgãos P até virar uma opção viável. Ela também é afetada pelo peso dos equipamentos de Pinóquio. Felizmente, temos o sistema de bloqueio perfeito. Ao bloquear os ataques no momento correto, um bloqueio perfeito é acionado, causando dano de postura e de quebra de arma no inimigo. Isso mesmo, ao bloquear perfeitamente vários ataques em sucessão, pode você quebrar a arma do inimigo. O recurso funciona de maneira magistral e a responsividade do bloqueio perfeito/parry pode ser equiparada à Sekiro. Já causar dano de postura suficiente abre espaço para atordoar os adversários e causar um ataque especial devastador!
O foco maior na ação e na agressividade funcionam muito bem, principalmente graças à junção dos sistemas. O loop entre usar ataques básicos ou carregados, bloquear perfeitamente ou desviar e usar fábulas é altamente viciante e demora um pouco para ser dominado, contudo, quando o jogador se acostuma com eles, o combate de Lies of P se transforma em uma orquestra perfeitamente conduzida.
Tratando-se de dificuldade, o jogo é bem justo no geral. As áreas iniciais são mais fáceis, funcionando como tutorais que preparam os jogadores para a porção final da aventura. Já as zonas finais são povoadas por adversários formidáveis que vão punir qualquer esquiva ou bloqueio usado no momento errado. Usar e abusar do bloqueio, tanto o perfeito quando o comum, é vital! Ao sofrer golpes durante o bloqueio comum, você perde vida de maneira provisória. Você deve atacar o inimigo rapidamente para recuperar o HP perdido. Se você demorar demais, o dano sofrido durante o bloqueio não pode mais ser recuperado. Esse é mais um dos sistemas que incentivam os jogadores à adotarem uma maneira de jogar mais agressiva. Os chefes são maravilhosos, tanto no que diz respeito ao design quanto ao moveset e lore!
Sem co-op online, em Lies of P podemos invocar espectros para nos auxiliar em cada luta de chefe. Os espectros transformam vários embates em um passeio no parque graças à quantidade de HP considerável e ao bom dano causado. A intenção dos desenvolvedores foi criar uma experiência justa e mais acessível aos jogadores. Um exemplo das facilidades concedidas é que ao morrer contra um chefe, nossos Ergos (recurso usado para melhorar de nível) são posicionados na entrada da Arena. Isso facilita o processo de farm caso o jogador queira se fortalecer antes de tentar novamente.
Agora não pense que você vai fazer turismo em Krat. A disposição de inimigos no cenário segue a escola de Dark Souls 2. Quase todos os adversários são posicionados em locais estratégicos pra destruir sua vida. Títeres escondidos em beiradas de telhados ou em esquinas de ruas, guardas com fuzis protegendo tábuas de madeira. Tenha certeza que você vai xingar muitas vezes!
Evoluindo o Invólucro
A progressão de Lies of P tem dois alicerces como base: o tradicional level up usando Ergo (as almas no game) e os Órgãos P. Subir de nível e tudo que implica o sistema segue à risca o que já conhecemos dos títulos do gênero. Temos certos atributos para aprimorarmos e eles escalam com as armas. É através disso que o sistema de builds de Lies of P é gerado.
As coisas ficam mais interessantes quando os Órgãos P entram em ação. Pinóquio tem uma árvore de bônus passivos que podem ser obtidos usando Quartzo, recurso raro obtido em missões secundárias ou ao derrotar inimigos especiais. Quer aumentar a quantidade de Frascos Vitais (poções de cura)? Os Órgãos P são o caminho. Eles são divididos em 5 fases e a escala de poder é excelente, dando ao jogador uma sensação real de aprimoramento. Alguns perks deixam P extremamente poderoso e são vitais para o sucesso. Aumentar a quantidade de itens consumíveis no cinto, aprimorar a esquiva, recarregar poção de cura automaticamente… Explore com atenção o sistema e priorize os bônus que fazem mais sentido para o seu estilo de jogo. Vale destacar que é IMPOSSÍVEL desbloquear todos em um único NG.
No que tange os equipamentos, Pinóquio é um títere e suas “armaduras” seguem a natureza do personagem. Os slots que podem ser equipados são Estrutura, Conversor, Cartucho e Forro. Cada categoria aumenta a defesa de coisas específicas, seja dano físico, resistência à fogo, medidor de bloqueio e por aí vai. O grande desafio é manter o peso carregado na medida certa para que o personagem não seja penalizado com uma esquiva lenta. Também é importante ficar atento aos tipos de equipamentos disponíveis. Alguns deles são focados em elementos específicos como fogo ou raio e podem diminuir consideravelmente a dificuldade de determinados chefões. Analisar a situação e se equipar de acordo à ela é fundamental!
Por fim mas não menos importante, Lies of P apresenta 3 opções de personalização. Podemos obter e alterar diversas roupas do protagonista, equipar máscaras bizarras de animais e mudar o corte de cabelo após algum tempo. O sistema é básico mas ajuda a fornecer um charme a mais pra quem joga!
Os encantos de Krat
Além de sua história principal dividida em 11 capítulos, Lies of P conta com um conteúdo secundário robusto que vai manter os jogadores bem ocupados. Temos dezenas de missões secundárias que se entrelaçam entre si. E, sim, o game conta com muitos perdíveis e suas decisões afetam tanto a história principal quanto algumas histórias paralelas. Diferente dos demais títulos do gênero, a Round8 seguiu um caminho mais acessível. Ao obter itens relacionados à missões secundárias, um ícone surge no menu de viagem rápida na área em que o NPC que quer o item está. Esse indicador visual ajuda os jogadores à concluírem as missões e terem um nível de imersão maior no game.
Outras atividades secundárias consistem em encontrar borboletas especiais usando a luz do grilo Gemini e obter materiais raros, responder os enigmas do misterioso Arlecchino e encontrar tesouros através dos Recipientes Críticos.
Essas atividades são espalhadas por todo o level design engenhoso de Krat. Se você for um veterano do gênero, já sabe o que esperar. Áreas que se conectam, atalhos que podem ser liberados antes de chefes, encurtando o caminho até a “arena”, locais com baús especiais protegidos por inimigos elite… A cidade em que o game se passa é cheia de identidade e, caso você leia os colecionáveis e se conecte com os moradores, ela acaba se tornando até uma espécie de personagem extra.
A jornada em Lies of P permite que Pinóquio atue como um humano ou uma marionete. O ato de ser um humano e todo o debate filosófico relacionado à isso é explorado constantemente ao longo de nossas andanças. A depender de nossas escolhas, somos presenteados com discos de canções belíssimas que afloram a humanidade do protagonista. Sentir, ter compaixão, cuidar, amar. O que faz de nós humanos?
Parafusos soltos
Chegou o momento de falar sobre a parte técnica nesse review de Lies of P. Começando pelos modos de desempenho. São dois disponíveis: os tradicionais modo Qualidade e modo Desempenho. Caso você escolha o Qualidade, existe a opção de ativar o modo de FPS Alto que ajuda a segurar os frames.
Eu concluí toda a minha jornada no modo Desempenho e não tive nenhuma queda de FPS, bugs ou crashes. Montado na Unreal Engine, Lies of P conta com cenários belíssimos que representam bem a Belle Époque. As fachadas dos edifícios são cheias de ornamentos e o intenso processo de industrialização se faz presente em vários locais e até nas armas.
Visualmente falando, o game é um ótimo exemplar do que a atual geração de consoles é capaz! A trilha sonora é outro ponto fantástico. O uso do piano e violino pra passar emoção é constante. Em certos trechos, me senti assistindo Psicose.
Apesar de não ter encontrado bugs, alguns percalços técnicos me incomodaram. O jogo conta com muitas paredes invisíveis que foram projetadas de maneira intencional pra reforçar a linearidade do game. Também presenciei em vários momentos texturas sendo carregadas na tela e a IA dos inimigos não é das melhores. Muitas vezes derrotei um inimigo ao lado de outro e o sobrevivente nem se mexeu. Outro aspecto curioso é que assim como em Dark Souls, eles possuem um raio de alcance de atuação curto e começam a recuar caso o jogador corra.
Por fim, mas não menos importante, temos o pulo. Lies of P conta com alguns trechos de plataforma (felizmente são poucos) e o pulo não é tão responsivo quanto deveria. Como o dano de queda é absurdamente alto, imagino que tenha sido um artifício proposital para evitar que os jogadores fiquem pulando por aí.
Review de Lies of P: O aprendiz supera o mestre!
Vou concluir meu review de Lies of P dessa forma: a Round8 conseguiu. O estúdio sempre deixou claro que as obras da FromSoftware são suas “musas inspiradoras” e os desenvolvedores cumpriram com êxito a missão de construir uma experiência inédita e de qualidade pro gênero. Eu não imaginava que um dia iria falar isso mas acabei gostando mais de Lies of P do que de Bloodborne, um dos meus jogos prediletos e que fiz 100%. A narrativa mais direta, os personagens secundários inesquecíveis e a lore riquíssima contribuíram pra isso. É difícil não se contagiar pelas mentiras de P! Nos vemos em Krat.
Com Lies of P, o aprendiz superou o mestre. A Round8 construiu uma obra magnífica que mescla elementos tradicionais da franquia com ideias originais que elevam o gênero.
- Narrativa e Lore
- Jogabilidade
- Conteúdo Secundário
- Direção de Arte
- Som (Trilha Sonora e Efeitos)
- Parte Técnica