Tivemos a incrível oportunidade de entrevistar Ariel Velloso e Sofia Wickerhauser, os organizadores do evento NewGame+.
Ariel atua como CEO da Aipo Digital, um estúdio brasileiro focado na criação de jogos indies. Já Sofia comanda a White Wolfy, uma produtora independente dedicada à fazer filmes e jogos focados (mas não limitados) no público LGBTQ+
Ariel e Sofia se uniram para realizar o NewGame+, uma mostra de games focados no público LGBTQ+. A primeira edição aconteceu na semana passada em São Paulo.
1 – De onde surgiu a ideia de organizar o NewGame+?
R: A produção de conteúdo LGBTQ+ cresceu muito nos últimos anos, seja cinema, séries de TV, quadrinhos ou games, o que torna surpreendente perceber que quase não existem mostras exclusivas de jogos com temática LGBTQ+. Sim, existem recortes e curadorias de Diversidade em diversos eventos de grande porte, mas a experiência Queer fica relegada ao papel de coadjuvante, nunca de destaque.
Percebemos que existe uma oportunidade, e até mesmo demanda, para que exista um espaço de respeito e celebração da cultura LGBTQ+. Que não trate o jogo apenas como um produto, com valor de mercado, e sim como uma criação intelectual, de impacto cultural, uma experiência interativa onde o visitante pode literalmente se colocar no papel de um herói que possui uma vivência ou realidade diferente da sua – o que acreditamos ser uma ferramenta poderosa para desenvolver empatia.
2 – A representatividade está cada vez mais importante e se tornando constante até em jogos mainstream como Marvel’s Spider-Man e o recente Dragon Age: The Veilguard. De que forma isso impacta na comunidade LGBTQ?
R: Ver personagens Queer ocupando espaços em títulos de grande alcance valida experiências e identidades que, por muito tempo, foram ignoradas ou mal representadas na mídia. Isso oferece à comunidade uma sensação de pertencimento e visibilidade que é essencial, especialmente para jovens jogadores que podem estar em busca de modelos e histórias com as quais se identifiquem.
Além disso, esses jogos ajudam a normalizar a diversidade para um público mais amplo. Quando representações LGBTQ+ aparecem de forma natural em narrativas mainstream, elas desafiam preconceitos e promovem empatia, o que contribui para a construção de uma sociedade mais inclusiva. Esse impacto se estende para além da tela, incentivando debates, inspirando criadores e mostrando que as histórias Queer são universais e têm valor comercial e cultural.
Ao mesmo tempo, é um lembrete da importância de continuar avançando para que essa representatividade não seja superficial, mas genuína, rica e desenvolvida em colaboração com a comunidade. Isso fortalece a ideia de que a diversidade não é apenas um elemento decorativo, mas uma força vital que enriquece a arte e a experiência de jogar.
3 – Indo na contramão da representatividade, temos uma parcela de jogadores que perpetuam a toxicidade levantando uma cruzada contra o que eles chamam de “cultura woke”. Como vocês enxergam esse termo e como lidam com a toxicidade no meio?
R: O termo “cultura woke” acaba sendo deturpado por uma parcela de jogadores para atacar avanços importantes em representatividade e inclusão, transformando o que deveria ser uma celebração de diversidade em um campo de batalha ideológico. Para nós, essa retórica é um reflexo de resistência às mudanças culturais que desafiam privilégios históricos e a visão limitada de quem merece estar no centro das histórias.
O NewGame+existe justamente para desmistificar essa narrativa, mostrando que diversidade não é uma ameaça, mas um recurso criativo essencial. Lidamos com essa toxicidade promovendo diálogo, educação e comunidades acolhedoras.
Entendemos que a resistência muitas vezes nasce da falta de exposição a perspectivas diferentes, e nosso evento tem o objetivo de abrir espaço para conversas construtivas, onde é possível enxergar a humanidade por trás das histórias representadas. Além disso, damos voz a desenvolvedores LGBTQ+ que trazem narrativas autênticas, desarmando estereótipos.
4 – O Brasil é um dos países mais criativos do mundo e aos poucos estamos deixando isso claro no aspecto global. Na opinião de vocês, o que falta pro cenário de desenvolvimento de game decolar no país?
R: Investimento e capacitação. Para capacitar: Boas escolas e cursos que ensinem o prático e teórico, preparem o aluno para o mercado de trabalho. Infelizmente, isso custa caro (pois depende de tecnologia de ponta), e estamos numa época que valoriza muito o individualismo, o tutorial de Youtube, o curso livre de 6 meses, que são ferramentas super importantes, mas deixam uma lacuna enorme que o aluno terá que correr atrás pra preencher, de como tudo funciona no mercado, “na vida real”.
Quanto ao investimento: hoje a indústria de Games movimenta anualmente valores maiores que a do cinema, por exemplo. No entanto, quase todos os programas de investimento possuem aportes totais muito maiores para os outros setores de economia criativa. Claro que a identidade cultural é importante para um país, não devemos ter o lucro como única prioridade, mas o investimento é estratégico e tem maior chance de retorno financeiro, então, merece ser levado a sério para poder gerar um resultado efetivo
5 – Qual dica vocês dão pra quem quer começar a trabalhar com a indústria de jogos no Brasil?
R: Siga seus desenvolvedores favoritos nas redes sociais. Assista videos no Youtube a respeito da produção (making of) de seus jogos favoritos. Converse com amigos e outros entusiastas sobre games (redes sociais, Discord, etc): encontre a sua “turma” dos games.
Participe de uma GameJam pra ter uma primeira experiência de desenvolvimento. Crie um pequeno protótipo em alguma engine mais acessível (GameMaker, RPG Maker, etc), e publique no Itch.io para que outras pessoas possam jogar e comentar. Procure por oportunidades de estágio para devs junior (como por exemplo em QA, que existem programas como o da Spcine, em São Paulo). Isso tudo são ações com custo de investimento muito baixo.
Se você tiver dinheiro, faça um curso (livre ou graduação) para aprender conceitos importantes de Design, a mexer nas engines, a fazer um pitch do seu jogo, etc. Fazendo uns 70% dos itens dessa lista, o caminho para desenvolver um jogo seu, ou para trabalhar em um estúdio profissional, estará muito mais claro pra você. E aí, é a segunda etapa da jornada.
6 – Essa é uma pergunta bem particular minha por ser o que chamam de “console gamer”. Por que é incomum vermos esses jogos mais nichados serem lançados em plataformas como o PS5 e Xbox Series?
R: A resposta é muito simples: é mais complicado e caro desenvolver para consoles. Você precisa obter um Dev Kit para poder testar o seu game no console escolhido, e no caso da Nintendo, por exemplo, não há uma maneira oficial de consegui-lo no Brasil – é necessárioimportá-lo, seguindo uma série de passos. Isso já tem um custo financeiro e de tempo que não valem a pena para um desenvolvedor pequeno.
Além disso, o processo de certificação e validação de conteúdo para games em consoles é muito mais restrito. Para publicar um game na Steam (ou plataformas menores, basicamente: basta ele funcionar e (em tese) não contar com conteúdo ilegal, criminoso. Já nos consoles existe uma série de diretrizes de conteúdo, otimização, integração com o hardware, que precisam ser seguidas. Em geral, só vale a pena esse esforço pra estúdios que já possuem certa experiência e capital de giro para investir no porting para consoles.
Perguntas direcionadas para Sofia
1 – Como sua experiência com curtas conversa com esse meio gamer?
R: Minha experiência com curtas-metragens conversa com o meio gamer por meio da interseção entre narrativa e emoção. Assim como no cinema, acredito que os games têm o poder de contar histórias que conectam profundamente o público com seus personagens, mundos e temas. Nos curtas que produzi, sempre busquei explorar narrativas sensíveis, com atenção aos detalhes visuais e ao impacto emocional — qualidades que também guiam nossa curadoria no NewGame+.
2 – A White Wolfy já está trabalhando no próximo jogo? Se sim, pode fornecer mais detalhes pra gente?
R: Estamos desenvolvendo REPROACH (ganhador do PROAC 2023), um beat ‘em up narrativamente inovador que marcará um importante passo na representação LGBTQ+positiva nos games.
O jogo está quebrando estereótipos antigos e oferecendo uma experiência onde personagens LGBTQ+ são protagonistas em um gênero historicamente pouco representativo.
Em REPROACH, Stout, um “detetive noir” gay, viaja no tempo lutando contra forças que querem destruir a linha do tempo, enquanto procura por seu grande amor que foi separado dele.
Pergunta direcionada para o Ariel
1 – Deliria é o próximo jogo da Aipo. Quanto tempo leva pra fazer um jogo como esse? Quais as maiores dificuldades que vocês enfrentam hoje nessa cena de game dev?
R: É possível desenvolver um jogo como DELIRIA em menos de 1 ano, com uma boa equipe sendo devidamente liderada. Mas na realidade… já entramos no 5o ano de produção do projeto.
Com muitas interrupções no meio, por questões bem variadas: dificuldades financeiras, pandemia, outras prioridades na vida pessoal. No fundo, acaba sendo quase tudo sobre dinheiro e tempo, sendo que “tempo é dinheiro”. Então, acaba sendo tudo sobre dinheiro.
Como se sustentar enquanto cria o seu projeto, mantendo uma disposição saudável? Se você resolver essa equação, seu projeto eventualmente ficará pronto.
Falando assim, parece fácil, mas na verdade, é um enigma muito difícil, porque não há receita de bolo: a resposta ideal é diferente pra cada pessoa e só você pode encontrar a sua.