Jogos com foco central em narrativa existem há muitos anos no mercado. Possuindo elementos que valorizam o roteiro e impõem escolhas aos jogadores, este segmento tem títulos que por vezes não são valorizados, mas que podem proporcionar excelentes experiências. Alfred Hitchcock: Vertigo busca entregar uma história de suspense que envolve mistério, morte e uma clássica investigação policial. Infelizmente, o jogo desenvolvido pela Pendulo Studios e publicado pela Microids apresenta diversos tropeços que atravessam a qualidade do título e o fazem falhar em diversos aspectos. É um game que acaba não divertindo e desperdiçando todo o seu potencial.
Inspirado em um clássico do suspense
Você deve ter reparado que o título do game possui como parte do nome o mesmo que o mestre do suspense Alfred Hitchcock, muito conhecido por sucessos como o atemporal Psicose (mais recentemente adaptado como a série Bates Motel). A escolha ocorre porque o jogo é baseado em um material do cineasta: o aclamado filme Vertigo, de 1958, conhecido no Brasil como Um Corpo que Cai. Embora possua alusões ao filme, o jogo acaba indo por um caminho diferente de muitas formas. Isto se traduz nos personagens, no roteiro e na própria ambientação. É certo que, muitas vezes, a liberdade em uma adaptação permite a melhoria do material original. Entretanto, em outros tantos casos isto não se sucede e Alfred Hithcock: Vertigo é, infelizmente, mais um exemplo desta última situação.
Na história, acompanhamos a saga de Ed Miller, um escritor acometido por um quadro único de vertigem após um evento traumático que envolve as mortes de sua suposta filha e a mãe dela. Curiosamente, não há sinal da existência das duas, o que atordoa o homem. Ed recorre à terapia e descobre segredos sobre sua infância que ajudam a entender o que aconteceu de fato.
Ambientação
A maior parte do jogo se passa na zona rural de uma pequena cidade dos EUA. Acompanhamos alguns ambientes que normalmente se resumem aos interiores de casas e uma pequena área exterior. Possuímos gráficos em um estilo cartoon, o que não se mostra uma escolha ruim. É preciso elogiar as áreas internas das residências exploradas: há um detalhamento muito bem-vindo, com cada cômodo possuindo objetos reconhecíveis que ajudam no quesito da verossimilhança. A vegetação também é convincente, mostrando-se no formato de grama e árvores.
O design dos personagens é razoável. Entretanto, as animações parecem um tanto engessadas e há alguns elementos nesse sentido que realmente não estão bons. Exemplo: os bebês do jogo se assemelham a simples bonecos. Isto pode levar a uma sensação de estranheza, um fator dentre outros que serão comentados mais à frente e que podem levar à perda de imersão.
Alfred Hitchcock: Vertigo apresentou em seus trailers e material promocional uma história sobre um suspense avassalador. A ambientação, infelizmente, não transmite isso. Existem diversos elementos no audiovisual que ajudariam a tornar Alfred Hitchchock: Vertigo uma experiência mais instigante, mas parece que as animações simplesmente não conseguem captar o tom da história, prejudicando em muito a possibilidade de experimentar o suspense. Este fica por conta de uma trilha sonora que de fato tem um toque sinistro e se conecta com Um Corpo que Cai. Entretanto, a sua constante repetição somada ao ritmo do game acaba fazendo que o sentimento de inquietude se dilua.
A jogabiidade de Alfred Hitchcock: Vertigo
Alfred Hitchcock: Vertigo usa uma jogabilidade que a princípio pode parecer semelhante com a de títulos da Quantic Dream como Detroit: Become Human. Você controla personagens com uma câmera em terceira pessoa e deve realizar ações para progredir a história.
Infelizmente, comparado a jogos que dividem o mesmo gênero, Alfred Hitchcock: Vertigo acaba tendo muitos tropeços. Diferente do já referido Detroit, as escolhas aqui realizadas são mínimas, incapazes de oferecer um nível aceitável de diversão para o jogador. A jogabilidade consiste em apertar alguns botões para definir opções de fala ou mover coisas utilizando os botões direcionais. É possível também controlar os personagens em algumas fases, movendo-os por um pequeno cenário enquanto eles tecem suas próprias conjecturas ou investigações.
Conseguimos realizar mudanças em diálogos de maneira tímida e na maior parte irrelevante para as cenas seguintes. Além disso, a maioria das ações envolve atos corriqueiros. Exemplo: organizar compras (uma de cada vez), escolher o que digitar no notebook, o que enviar no celular, arrumar itens da casa… É tudo excessivamente desinteressante. Nos trechos que deveriam evocar o suspense, ações triviais continuam a ocorrer e quebram o ritmo.
Uma passagem, em específico, é mais irritante do que as demais. Ocorre no início do jogo e envolve investigar uma propriedade rural. É preciso interagir com todos os objetos possíveis do local e verificar a porta da casa várias vezes para, só depois, conseguir entrar. Uma cena que poderia facilmente durar alguns minutos pode se estender para mais de meia-hora com este artifício.
Como se não bastasse, as animações são lentas. Por vezes, a câmera foca em algum dos personagens por alguns nervosos segundos e só depois alguma ação é realizada. O potencial de escolha é muito pequeno e não possibilita uma real alteração do que está acontecendo ao seu redor.
Existem também Quick Time Events, mas eles não alteram de maneira significativa a dinâmica do jogo. Não é possível sequer, de fato, falhar verdadeiramente neles. A incorreta realização dos QTEs modifica os eventos em um nível praticamente irrelevante.
Uma parte mais interessante da gameplay surge com Ed passando por sessões de hipnose. Enquanto o controlamos, conhecemos seu passado em uma lógica semelhante às análises de neurodança presentes em Cyberpunk 2077. Esta estratégia se mostra boa e podemos ver eventos a partir de uma visão “ideal” por parte de Miller e outra mostrando como eles realmente aconteceram. Infelizmente, até aqui há certo marasmo: certas partes da história acabam se repetindo na tentativa de explicar o que ocorreu.
Controlamos, a princípio, mais dois protagonistas além de Ed: a Doutora Julia Lomas e o xerife local. Embora sejam personagens interessantes, a forma como a jogabilidade de ambos é conduzida acaba por diminuir a curiosidade pelo papel de ambos na trama.
Com isto em mente, jogar Alfred Hitchcock: Vertigo se assemelha mais a experimentar um filme interativo. Há pouca liberdade e uma infeliz linearidade.
Desempenho
Durante a gameplay, o jogo foi testado em sua versão de PlayStation 4 rodando em um PlayStation 5. Normalmente a jogabilidade se comporta bem, mas houve uma estranha queda de frames em um momento específico. Além disso, o jogo possui telas de loading que quebram a imersão. Elas, infelizmente, ocorrem em muitos momentos, entre e durante as fases. Acaba sendo um elemento fustigante que torna o título ainda mais resistente à diversão.
Importa mencionar que, lamentavelmente, há um problema de progressão que ocorreu próximo ao final do jogo, impossibilitando a conclusão satisfatória do game. Uma vez que não há como mudar a posição de botões ou pular cenas, a experiência é arruinada.
Narrativa
A expectativa é subvertida em função do tédio. Isto ocorre por conta da extensão do enredo para muito mais do que o poderia ser realizado. Como falamos antes, a jogabilidade insiste em levar o jogador para realizar tarefas corriqueiras e que não têm grande impacto. A história parece inflada, com o jogador ajeitando chinelos, escolhendo a cor de brinquedos e revivendo uma mesma cena várias vezes. Todo o enredo, que pode se estender durante mais de dez horas de gameplay, é arrastado.
É claro que uma obra com um ritmo mais lento não deve ser subestimada. Existem muitos exemplos que mostram que um bom desenvolvimento acaba sendo extremamente importante para que as ações seguintes reverberem em nós com grande intensidade. Mas parece que esta noção é levada ao extremo em Vertigo. Fazemos ações do dia-a-dia e a única recompensa é que a história prossiga. Não há nada mais a ser explorado, nada que possa tornar a experiência um pouco mais tragável. As atitudes que tomamos convergem nos mesmos resultados, com mínimas alterações. Essa linearidade forçada prejudica completamente o fator replay.
A história de Ed Miller tem seus momentos interessantes. Os eventos que o envolvem, em ocasiões oportunas, despertam curiosidade. Entretanto, é necessária muita suspensão de descrença para diversos fatos apresentados. Por exemplo, o procedimento de realizar hipnose no jogo é altamente eficaz. Tais resultados seriam repetidos com facilidade na vida real? É uma das conveniências de enredo, das muitas que infelizmente aparecem em Vertigo. A relação entre personagens, o rumo dos acontecimentos e sequências que fogem da realidade acabam atingindo um grau de absurdo. O roteiro tenta superestimar a si mesmo, falhando e trazendo momentos verdadeiramente estranhos, talvez até constrangedores. Na tentativa de demonstrar originalidade sem ignorar o trabalho do filme, o jogo não faz nem um, nem outro.
Além disso, Ed é apresentado, enquanto ainda sofre de vertigem, com um comportamento detestável e apático. Embora seja compreensível o que aconteceu, o jogo falha em realizar uma abordagem legitimamente tridimensional e diminui o que Miller poderia ser. A maioria dos personagens, infelizmente, passa por um mau desenvolvimento. O tempo que poderia ser utilizado para isso é levado para as já citadas atividades triviais que realizamos ao longo de Vertigo.
É preciso, também, mencionar algumas infelizes escolhas de roteiro que são, de maneira desafortunada, inevitáveis de serem vivenciadas jogador. Há uma diferença entre um jogo ser perturbador ou simplesmente mórbido. O roteiro de Alfred Hitchock: Vertigo coloca algumas ações desnecessárias durante a narrativa, apenas para o choque. O objetivo não só não é alcançado como é totalmente ineficaz e apelativo. Por exemplo: em dado momento, o jogador tem que ativar um comando para que o personagem que está controlando tente suicídio disparando um tiro na própria boca. Qual a necessidade de mostrar a cena quase que inteiramente e ainda dar ao jogador a opção (que não pode ser evitada) para apertar o gatilho?
Infelizmente os momentos problemáticos não são incomuns. O jogador é obrigado a drogar um personagem e tem a opção de se jogar de uma ponte. São desnecessárias, também, algumas seções da história envolvendo um gato. Não só há diálogo sugestivo de maus tratos a animais, como também o roteiro exige que o felino também seja drogado para a continuidade do enredo. São elementos tratados de maneira irresponsável e que em nada contribuem para a experiência.
Quando um jogo focado em história acaba tendo dificuldades em desenvolvê-la, ou o faz de maneira insuficiente, ele como um todo é avariado. Infelizmente, é o que temos aqui.
Um último ponto em narrativa é que o jogo não está localizado para o português brasileiro. Sequer há legendas em nosso idioma. Isto acaba sendo completamente negativo para boa parte do público.
Alfred Hitchcock: Vertigo não vale a pena
Realizar um jogo focado em narrativa não é fácil, como alguns podem pensar em um primeiro momento. Exige refinamento no roteiro, uma jogabilidade agradável e a certeza de que ambos estes blocos conversem entre si. Em Alfred Hitchcock: Vertigo, nada disso acontece.
Talvez o primário objetivo de Vertigo seja apresentar aos jogadores uma experiência muito próxima a de um filme. Mas isso não muda o fato de que diversas e notáveis imperfeições acabam prejudicando o resultado da obra. Para uma aventura que pode durar tantas horas, o desenvolvimento da trama não justifica uma grande lentidão no rumo dos acontecimentos. Não só isso, como também não se justificam ações minúsculas para esticar o tamanho do jogo ou momentos mórbidos com o único objetivo de chocar.
Vertigo falha como suspense e também como experiência jogável. É um título frustrante e desperdiçado em uma narrativa que não permite escolhas reais. O jogador é impossibilitado de ter a sensação de tomar as rédeas do enredo ou de sofrer pelas consequências de escolhas erradas, algo comum quando pensamos em games com foco parecido. Entretanto, aqui o inverso ocorre e somos levados exaustivamente a apertar botões e girar os direcionais de maneira quase automática. Os problemas de ritmo no enredo se somam à jogabilidade errática, resultando em uma quebra de imersão e completo esvaziamento de qualquer suspense que fosse pretendido a ser experimentado pelo jogador.
Entre os pontos positivos, podemos destacar o cuidado com os ambientes, alguns momentos da história e a abordagem em certos personagens. Infelizmente, são pontos eclipsados por uma série de defeitos incrustados no desenvolvimento do jogo. Não basta tentar provocar suspense: é preciso fazê-lo de maneira meticulosa, o que não se confunde com uma jogabilidade que aborrece e é oposta à busca por diversão. No objetivo de nos fazer entender as histórias de seus personagens, Alfred Hitchcock: Vertigo acaba sendo vítima de seus próprios erros.
PS: A análise foi realizada em um PlayStation 5 através de uma cópia cedida pela Pendulo Studios e Microids.
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