Ao se deparar com Despelote, sua primeira reação pode ser procurar o significado da palavra. Em espanhol, “despelote” descreve uma bagunça, um tumulto, uma situação caótica — e, curiosamente, essa definição serve tanto para certos momentos do jogo quanto para a atmosfera que ele retrata. Através desta análise, minha review de Despelote vai demonstrar como essa aparente desordem se transforma em uma narrativa profundamente tocante sobre infância, futebol e sociedade.
Desenvolvido por Julián Cordero e Sebastián Valbuena, distribuído pela Panic, Despelote é uma experiência de cerca de duas horas que mergulha o jogador em uma representação viva e cheia de nuances do Equador em 2001 e, ressalto, que se você tiver empatia por seres humanos e for, minimamente, apaixonado por futebol e jogos indies/narrativos, vai gostar muito deste!
Um mergulho na infância e na paixão nacional pelo futebol
Apesar de usar um enquadramento em primeira pessoa, o jogo carrega várias camadas. Em alguns momentos, ele parece uma memória de infância interativa; em outros, funciona como um documentário esportivo misturado com drama social e uma reflexão transparente sobre o processo criativo.
Desde a cena de abertura, Despelote já faz refletir sobre o quanto os jogos de futebol evoluíram desde o início dos anos 2000. Ao final, pode ser difícil não pensar no crescimento do próprio meio dos videogames.
Logo nos primeiros minutos, no entanto, todas essas questões parecem distantes. Você assume o papel de Julián, um garoto de oito anos — uma versão levemente fictícia do próprio Cordero — brincando com uma cópia de Kick Off, clássico top-down de Dino Dini.

A sensação é familiar, mas o controle é diferente: para chutar, é preciso usar o analógico direito, com a opção de recuar e aplicar mais força. Esse detalhe, na verdade, serve como um tutorial disfarçado, preparando o jogador para os momentos em que Julián terá uma bola real nos pés.
O cenário é um pedaço da cidade de Quito, incluindo sua casa, a escola e o Parque La Carolina. Em 2001, o Equador estava tomado pela febre do futebol, catalisada por um momento histórico: Agustín “Tin” Delgado, ídolo local, marcou um gol decisivo contra o Peru, deixando a seleção a poucos pontos da classificação inédita para a Copa do Mundo de 2002.

Futebol como religião
No contexto sul-americano, o futebol não é apenas um esporte; é quase uma religião, uma maneira de viver. Em Despelote, ele também surge como válvula de escape diante das dificuldades econômicas que assolavam o país. A prioridade que se dava às manchetes esportivas nos jornais — antes mesmo das notícias sobre protestos e crise — revela uma sociedade que, como tantas outras, encontra no sucesso esportivo uma esperança diante da adversidade.

A fidelidade desse retrato é tão crível que parece inevitável: quem melhor para captar essa energia do que um garoto apaixonado por futebol, em meio a um país que respirava o esporte a cada esquina?
Fragmentos de futebol e liberdade em meio ao cotidiano
As datas dos jogos decisivos servem como estrutura para que Julián Cordero e Sebastián Valbuena montem Despelote em forma de pequenas cenas do dia a dia, como flashes rápidos de uma memória viva. A sensação é a de participar de uma disputa de meio de campo, onde a posse de bola – ou melhor, o controle da narrativa – muda constantemente de mãos.
Em boa parte da experiência, Despelote coloca o jogador sob regras específicas. Julián não circula livremente; ele tem destinos marcados e horários a cumprir. Para se orientar, basta baixar o olhar e checar o relógio em seu pulso.
Em uma das cenas, por exemplo, a mãe de Julián pede que ele permaneça sentado em um banco de parque enquanto ela resolve assuntos pendentes. Apesar da música suave tocada por um artista de rua próximo, a vontade de sair correndo para encontrar os amigos é quase irresistível.
Chutar a bola nos outros nunca foi tão “divertido”
É nesse ponto que a Review de Despelote revela um dos aspectos mais brilhantes do jogo: mesmo com um espaço aparentemente controlado, a liberdade de Julián gera pequenas histórias espontâneas. Chutar a bola e ver as reações diferentes das pessoas ao redor me surpreendeu mais do que eu imaginava.

Se você lançar a bola perto de um casal que está tentando se reconciliar, por exemplo, vai acabar interrompendo o momento e causando um climão desconfortável. Já se a bola rolar para perto de uma ciclista, ela vai se irritar na hora — afinal, o perigo de uma queda é real. Até mesmo o vendedor de sorvetes torce o nariz quando seu carrinho vira alvo de uma bolada descuidada.
Por outro lado, ao chutar a bola para perto de outro garoto no parque, uma brincadeira se inicia naturalmente, com passes para lá e para cá, como se a amizade nascesse em segundos. Essas interações simples, porém tão vivas, são a prova de como Despelote é magistral ao capturar a essência da infância e da vida comunitária com uma sensibilidade rara.

Travessuras, surpresas e a beleza da imperfeição em Despelote
Em Despelote, ser bem-comportado não leva você a lugar nenhum — então, melhor mesmo é se meter em encrenca. Vestido com a melhor roupa para uma festa, a ordem de não sujar o terno soa mais como um convite para correr direto até a cozinha.
Mesmo que você resista à tentação, uma tempestade inesperada pode acabar com qualquer esforço de se manter limpo. Portanto, em uma dessas cenas, corremos de volta para casa faltando poucos minutos, apenas para mergulhar de cara numa poça d’água gigante. Resultado? Uma bronca severa da mãe, que antecede a uma frase carinhosa!

Mas Despelote não se limita a essas pequenas desventuras. Pelo contrário, nesta review de Despelote mostro como o jogo encontra espaço para inocência e criatividade mesmo nos momentos de obediência. Em vez de monopolizar a TV, por exemplo, você pode escolher brincar com sua irmã mais nova, desenhando um sapo meio torto que a faz dar boas risadas — e, quem sabe, provocar um sorriso no jogador também.
Seja o que você é, uma criança apaixonada por futebol
Além disso, o cuidado dos criadores, Julián Cordero e Sebastián Valbuena, em registrar sons locais cria uma ambientação viva e envolvente, que convida a parar, ouvir e sentir o ambiente. No entanto, há um pequeno desafio: acompanhar as legendas enquanto a curiosidade infantil nos impulsiona a explorar tudo ao redor pode ser complicado.
Ainda assim, Despelote brilha especialmente quando você não está no controle direto. Mesmo seguindo ordens — como pintar com os dedos no vidro de um carro embaçado ou completar um questionário durante uma detenção — o jogo encontra formas geniais de estimular a brincadeira. E, às vezes, ele vai além: uma mudança visual repentina faz com que cenas anteriores ganhem novo significado, enquanto outra sequência brinca com a ideia de como nossas obsessões digitais transbordam para o mundo real.

Curiosamente, embora o jogo se baseie em eventos documentados, ele nunca é previsível. Em um golpe de mestre, os criadores usam o próprio significado alternativo de “despelote” — despir — para revelar como é impossível recriar uma memória de infância de forma completamente fiel.
E sim, em alguns momentos, o jogo parece perder um pouco o controle, como se estivéssemos jogando com os jogadores desajeitados. Mas, justamente nesses riscos criativos, Despelote oferece um lembrete vibrante de quanto espaço ainda existe para os games inovarem em narrativa. Sem dúvida, é uma experiência que você nunca vai encontrar num PES da vida.

Review de Despelote – Um pequeno grande retrato do Equador
No começo, é verdade que o título Despelote não chama muita atenção. Aliás, ele pode até afastar quem olha rapidamente, sem entender a profundidade do que está por trás. No entanto, quem decide dar uma chance e mergulhar de cabeça na experiência percebe rapidamente a força da narrativa que pulsa em cada rua de Quito.
À primeira vista, o futebol em Despelote parece apenas um pano de fundo. Mas, na realidade, o esporte serve como uma poderosa cortina de fumaça, escondendo — ainda que momentaneamente — os sérios problemas políticos e econômicos que o Equador enfrentava em 2001. Como mostrei nesta Review de Despelote, o futebol movimenta um país inteiro, conectando as pessoas e proporcionando pequenos momentos de felicidade genuína, mesmo em tempos difíceis.
Vale lembrar que, embora o Equador não tenha avançado muito longe na Copa do Mundo de 2002 — sendo eliminado ainda na fase de grupos —, a simples classificação já movimentou o país de maneira impressionante. Nesse mesmo período, inclusive, o Equador também viu surgir seu primeiro filme produzido integralmente com recursos nacionais, mostrando que aquela época de transformações foi muito além do futebol.
Enquanto joga Despelote, é importante deixar de lado qualquer preconceito com os gráficos estilizados e não realistas. Eles não estão ultrapassados: são parte essencial da escolha artística dos desenvolvedores. Dê uma chance ao jogo. Se você curte experiências narrativas profundas, com ambientações ricas em cultura e história, Despelote vai te conquistar.
Evolução aparente
O Equador, depois desse marco histórico, cresceu bastante no cenário futebolístico. Não por acaso, passou a disputar de igual para igual com seleções tradicionais nas eliminatórias seguintes. Portanto, em Despelote, tudo isso aparece de forma delicada e inteligente: seja jogando bola na praça, ouvindo seus amigos ao redor da fogueira, ou brincando com sua irmã no quarto, o jogo vai muito além da simplicidade, ele te faz vivenciar uma época maravilhosa de um país maravilhoso.
Despelote é uma experiência única que vai muito além de simplesmente jogar futebol. Ele captura, com sensibilidade, a inocência da infância e o impacto social que a paixão pelo futebol pode gerar em um país como o Equador.
Pontos Positivos
- Narrativa sensível e autêntica
- Ambientação cultural rica
- Estilo artístico único
- Momentos de liberdade genuína
- Sons ambientes envolventes
Pontos Negativos
- Gráficos podem afastar à primeira vista
- Ritmo lento em alguns momentos
- Dependência de legendas
- Curta duração
- História
- Jogabilidade
- Desempenho
- Gráfico
- Som