Esse review de Harold Halibut certamente é o mais difícil que eu já escrevi. E os motivos são diversos. A experiência construída pelo estúdio Slow Bros. é a mais única que eu já vivenciei no universo dos games. E também é a mais intimista.
Veja a versão em vídeo:
Em minha visão, o que a Odisseia de Homero foi para a literatura, Harold Halibut é para os jogos. Não existe nada similar, imagina igual. E nisso eu não me referencio apenas pela direção de arte que foge do padrão, mas pela proposta. Não é todo dia que encontramos um jogo sobre uma pessoa comum e sua relação com outras dezenas de pessoas comuns.
O título representa tantas coisas que chega fico relutante em chamá-lo de jogo. Mas pra entender isso tudo, se aconchegue e vem comigo nesse review de Harold Halibut, uma obra que captura com perfeição a essência da humanidade.
Um ser humano ordinário
O projeto da Slow Bros. leva como título o nome do pratogonista da nossa aventura. Harold, ou Harry para os mais íntimos, é o Faz-Tudo de Fedora, uma nave que partiu da Terra e acabou ficando presa debaixo d’gua em outro planeta. A história se passa muitos anos após essa partida.
A “cidade” é comandada pela SoAcqua S.A., uma corporação fundada pelos ultraricos da Terra. Como o nome da empresa indica, eles se especializaram no uso da água para controlar o transporte entre os distritos da estação através de tubos.
A narrativa de Harold Halibut é cheia de mistérios e reviravoltas que vão sendo apresentadas num ritmo relativamente lento, tudo em prol para que o jogador mergulhe no universo e consiga construir uma relação melhor com os personagens.
E que personagens… mesmo dias depois de ter concluído o jogo, eu não consigo parar de pensar no otimismo inquebrável de Buddy, na compaixão do professor Chris e, principalmente, na evolução absurda que Harold tem ao longo da jornada. Todos os personagens possuem múltiplas camadas que podem ser descascadas caso o jogador converse muito com os NPCs e leve seu tempo explorando.
Se você for uma pessoa ordinária como eu, bom, é impossível não se identificar com Harold e seus dilemas. Como ser útil em uma sociedade que praticamente mal te enxerga? Quais são as escolhas certas a serem tomadas? Devemos priorizar a carreira ou o ato de viver em si? O que é viver? O que é ser adulto? A ingenuidade é algo negativo ou positivo? A aventura é tão mágica que ela deixa em evidência que muitas vezes o extraordinário é só uma questão de percepção.
Harold Halibut é um jogo sobre o existencialismo e seus diálogos geniais geram dezenas de reflexões que convidam o jogador a mergulhar dentro de si mesmo. Um dos grupos presentes no game, os Lumis, chegam até a citar as ideias existencialistas de Sartre. E podemos ver nitidamente que muito da narrativa foi pautada em cima das teses do filósofo. O grupo mescla a intelectualidade com o ativismo político, desenhando que ao menos um desenvolvedor é um grande apreciador do filósofo.
Harold Halibut é um “jogo” provocativo, engenhoso, necessário. A qualidade dos diálogos e das atuações aqui é algo que chega a ser até difícil de descrever. São raríssimos os jogos que conseguem captar a essência da humanidade tão bem e construir personagens tão originais que perpassam a barreira do fictício. Quando a tela de créditos subiu, senti pavor, melancolia e saudade. Inicialmente fiquei relutante em seguir em frente.
Se você apreciar Harold Halibut com calma, do jeito que ele deve ser apreciado, é duro seguir em frente. Mas até nisso os desenvolvedores foram gênios. Como um dos diálogos do jogo deixa claro: Precisamos ser felizes com a incerteza.
No fim do dia, todos nós temos nosso lampejo de Buddy, Chris, Tommy, Wiu ou do próprio Harold. Como diria Buddy, o ser humano é como um planeta e devemos sempre estarmos abertos a explorar novos! As vezes, só precisamos de um pouco de paciência.
Se você apreciar Harold Halibut do jeito correto, sua jornada virtual vai levar entre 12 a 15 horas. Contudo, o impacto gerado na vida real é incalculável. Levarei os ensinamentos que a jornada me proporcionou até o final da minha vida.
Humanamente humano
Durante minhas 16 horas com o projeto, eu fiquei me perguntando constantemente se é possível considerar a experiência como um jogo eletrônico. O conceito parece simples demais para a obra criada pelo Slow Bros.
Temos uma história com início, meio e fim. Um personagem que controlamos em uma visão 3D e é isso. Harold Halibut não tem combate. Mas ele é interativo. Podemos jogar minigames em arcades, desparafusar painéis, conectar cabos, operar computadores, lavar paredes. Harold é um faz tudo.
Não existem dragões ou zumbis a serem mortos aqui. Tampouco trechos de plataforma. O dia a dia é monótono propositalmente para fazer uma crítica a como nós desperdiçamos a nossa própria vida. Pra você ter um gostinho do quanto o jogo se propõe a simular a vida – é possível assistir uma novela turca e nas melhores partes do episódio, comerciais surgem na TV. Esse é o nível de detalhe do”game”.
A proposta é quase que completamente focada em diálogos e na relação que desenvolvemos com os habitantes de Fedora. Não temos missões a serem concluídas mas tarefas ordinárias como ajudar uma pesquisadora a analisar detritos, limpar pichações e por aí vai. Na medida que desenvolvemos nossos laços com os personagens, Harold se transforma de um faz-tudo pra um grande amigo e consequentemente o mestre do seu próprio destino. As tarefas são divididas em principais, que ajudam a progredir a história e as opcionais, relacionadas aos habitantes de Fedora. As tarefas opcionais acrescentam e MUITO ao jogo, revelando mais sobre o background de cada NPC.
A história é cheia de mistérios, críticas sociais, burocracias corporativas, tramoias de vilões e até uma organização secreta com ideias revolucionárias. No todo, eu gosto mais de usar o termo “experiência interativa” do que jogo.
Não espere por diversão, apesar de muitas passagens terem me deixado com um sorriso de ponta a ponta. Harold Halibut se assemelha mais a um simulador da vida real se vivêssemos em uma nave espacial encalhada no fundo do mar.
O suprassumo artístico
Tudo que você vê no jogo, literalmente tudo, foi feito à mão pelo estúdio e depois escaneado para ser incorporado no game. É inevitável não fazer comparações com obras como Wallace & Gromit mas Harold Halibut não usa stop motion. Os elementos são renderizados em tempo real, gerando um estilo artístico extremamente singular e que adiciona um charme a mais na aventura.
O mais irônico de tudo é que a decisão não foi proposital. O diretor do projeto, Onat Hekimoglu, não sabia fazer jogos na época em que ele decidiu criar Harold Halibut. A solução foi o caminho mais difícil: fazer tudo na mão grande.
Esse preciosismo com o projeto gera cenas memoráveis, com takes que vão ser difíceis de serem esquecidos. A direção de arte de Harold Halibut parece ter sido comandada pelos melhores diretores da história de tão única que é.
Aliado a isso, temos atuações fantásticas apoiadas com um voice acting formidável, além de uma qualidade surreal no que se refere ao texto. O roteiro e os diálogos do jogo ficam facilmente entre os melhores que eu já vi. Meticulosidade é uma palavra perfeita para descrever toda a parte técnica do projeto.
O som é impecável e a trilha sonora é composta por músicas que casam perfeitamente bem com cada cena. Os diálogos são reais e vívidos, nos lançando para o burocrático e inusitado mundo de Fedora. Os visuais são únicos… A cereja do bolo é um desempenho perfeito no PS5. Não tive nenhum bug, crash, queda de frame ou loading demorado ao longo da minha jogatina.
Review de Harold Halibut: um dos melhores indies já criados
O estúdio Slow Bros. criou uma obra grandiosa e única. Tão única que arrisco a dizer que não merecemos ela. Em uma indústria com jogos cada vez mais padronizados e que pouco fazem pensar, Harold Halibut é um grito de resistência ao status quo.
Não é um jogo pra todos, pelo contrário, sua proposta é nichada e vai ser celebrada por pouquíssimas pessoas. Mas à todos os Harolds por aí, deixo minha recomendação máxima ao jogo, prepare-se pra se sentir compreendido e abraçado em um mundo cada vez mais solitário.
Harold Halibut é inesquecível!
- Narrativa
- Jogabilidade
- Conteúdo Secundário
- Visuais
- Desempenho
- Som