Embora tenha feito grande sucesso no passado, o gênero dos farming sims (simuladores de fazenda) passou por alguns bons anos de ostracismo, durante os quais grandes franquias como Harvest Moon e Rune Factory passaram a repetir suas fórmulas múltiplas vezes, trazendo poucas inovações ao gênero e entregando jogos com baixíssimo investimento.
Tudo mudou com a chegada de um indie singelo, mas surpreendente. Sim, estou falando dele mesmo, o queridinho Stardew Valley. Seu sucesso foi tamanho, que não é nenhum exagero dizer que o gênero dos farming sims se divide em “antes de Stardew Valley” e “depois de Stardew Valley”. Afinal, após o lançamento do jogo desenvolvido por Eric Barone, passamos a ver um número cada vez maior de desenvolvedoras investindo nesse estilo de jogo. De indies criativos como Graveyard Keeper e Potion Permit, até as franquias famosas como Story of Seasons e os jogos baseados em Doraemon, existe agora um grande número de opções para os amantes dos ditos jogos “de fazendinha”.
De olho nesse renovado filão, a nipônica Square Enix decidiu utilizar toda a sua expertise em JRPGs para criar Harvestella, jogo exclusivo de Switch e PC, que promete oferecer uma mistura de gêneros capaz de entreter tanto aqueles que gostam de épicas aventuras, quanto aqueles que preferem a calmaria do campo — ou, pelo menos, essa é a ideia inicial.
Franquia nova, mas familiar
Embora possua um nome novo e um universo totalmente auto-contido, as primeiras impressões em relação à narrativa, à criação de mundo e ao combate de Harvestella permitem identificar diversos elementos similares a outros jogos da Square Enix — principalmente se pensarmos em alguns títulos mais clássicos da série Final Fantasy. Se assim quisesse, a Square Enix poderia (com apenas algumas mudanças) posicionar Harvestella como um novo spin-off da franquia Final Fantasy. Porém, não se anime muito com isso. Ao analisar friamente o que o jogo nos apresenta, faz sentido a tentativa de posicioná-la como algo separado.
Em termos de história, Harvestella é, para o bem e para o mal, um JRPG ultra-clássico. E, não, eu não estou exagerando aqui, pois é difícil pensar em um clichê do gênero que o jogo não explore de uma maneira ou outra. Isso começa já com o protagonista que você controla. Criado pelo jogador a partir de um sistema de customização bastante limitado (nesse aspecto, o único ponto digno de nota é a inclusão de opção para personagem não-binário), o personagem principal é um protagonista mudo, que acorda no mundo de Harvestella sem memória alguma. Com um ritmo bastante lento e metódico, o jogador é introduzido aos poucos ao principal mistério da trama, bem como ao looping de gameplay que se repetirá durante as mais de quarenta horas de campanha.
Um conto de muitos contos
Não é possível entrar em muitos detalhes a respeito da trama principal de Harvestella, pois o jogo funciona quase como uma dessas séries com formato antológico. Isso significa que a cada novo capítulo, o jogo apresenta uma subtrama única, que é quase inteiramente fechada em si. É claro, existe sim uma trama maior que perpassa toda a aventura, mas ela demora muito a ser explorada em plenitude. O que eu posso dizer é que essa trama está relacionada aos quatro gigantescos cristais elementais de Harvestella (lembra Final Fantasy, não?), seus efeitos nas quatro estações do ano, bem como o mistério sobre o crescimento da “Quietus”, a estação da morte que aparece entre as demais estações.
Embora o formato antológico permita ao jogo explorar narrativas com temas e pegadas diferentes, a história de Harvestella faz pouco para segurar sua atenção, pois peca ao repetir as mesmas batidas já vistas em tantos outros jogos do gênero. Os personagens, em sua maioria, são construídos com base em estereótipos e tropos mais velhos do que andar pra frente. A consequência disso é que a maior parte das personagens tem a profundidade de um pires, pois são monotônicas e apresentam pouca evolução no decorrer da trama. Surpreendentemente, são nas side-quests que o jogo apresenta histórias mais interessantes, ao elaborar subtramas mais mundanas, que correm paralelas às tramas principais. Importante ressaltar, contudo, que o jogo não possui localização para o português brasileiro, o que infelizmente pode ser uma grande barreira para que jogadores possam apreciar o jogo como um todo.
Ser, ou não ser (um JRPG)?
Em termos de gameplay, o tempo em Harvestella é dividido, basicamente, em dois momentos bastante distintos. No primeiro deles, você vai cuidar da pequena fazenda que você ganhou no começo do jogo (por algum motivo, estar sem memória te faz automaticamente um modelo ideal de fazendeiro. Vai entender). Fora da fazenda, Harvestella funciona basicamente como um JRPG de ação bastante tradicional. Com cidades para visitar, calabouços para explorar e uma miríade enorme de monstros para derrotar, o jogo apresenta uma extensa campanha que poderia facilmente figurar em um jogo que não tivesse quaisquer elementos de farming sim. Nesse sentido, Harvestella inverte a ordem de importância encontrada em jogos do gênero. Enquanto títulos como Stardew Valley e Harvest Moon podem ser vistos como jogos de farming sim com um pequeno elemento de combate, Harvestella é o contrário — um JRPG de ação, com pequenos elementos de “fazendinha”. Infelizmente, isso não é algo muito bom.
Embora essa abordagem diferenciada possa atrair um público mais acostumado com JRPGs tradicionais, o grande problema está em como esses diferentes elementos se conversam durante o jogo. Ou, melhor, como eles NÃO se conversam. Um dos principais aspectos do gênero farming sim está no constante retorno positivo. Quer focar na fazenda? O resultado te ajudará a ganhar dinheiro. Quer minerar? Os metais serão utilizados para melhorar suas ferramentas. Quer conversar com moradores? Eles te darão itens ou ensinarão novas receitas. Em outras palavras, tudo o que você faz nesse tipo de jogo importa para o seu progresso. Infelizmente, isso não acontece em Harvestella.
A impressão que eu tenho com esse jogo é que a Square Enix resolveu misturar dois gêneros diferentes (um JRPG e um farming sim), porém não parou para pensar em maneiras interessantes de fazer com que essas duas ideias funcionassem em conjunto. O resultado é um jogo com duas estruturas diferentes que pouco se conversam. Consequentemente, trabalhar na sua fazenda traz pouquíssimas vantagens ao seu progresso na história. No máximo, vai te ajudar a conseguir dinheiro para comprar armas novas. O contrário também é válido. O avanço na história não influencia muito na sua fazenda. É quase como se você estivesse indo de um jogo para outro toda vez que você saísse da sua fazenda para explorar o mundo.
A analogia do pato
Essa dicotomia poderia não ser um problema tão grande se cada um dos momentos distintos de Harvestella funcionassem em sua plenitude. Contudo, infelizmente, Harvestella é um daqueles jogos nos quais é possível aplicar a famosa analogia do pato. Dizem que o pato é aquele animal que sabe correr, nadar e voar, porém não faz nenhuma dessas coisas muito bem. Harvestella é quase isso. Individualmente, nenhuma de suas mecânicas (exceto o combate, mas logo chegaremos nisso) é efetivamente ruim. Porém, elas também não são particularmente boas. As mecânicas de gerenciamento de fazenda são básicas e limitadas, com um sistema de upgrades que incentiva o grinding, já que você tem que colher diferentes tipos de plantas um certo número de vezes para conseguir melhorar suas habilidades. Os calabouços que você pode explorar possuem um level design simples e formulaico e, bem, Harvestella também possui alguns problemas cruciais no seu combate.
Nesse aspecto, o jogo até traz ideias interessantes. Algumas das quais são executadas de modo satisfatório. Uma delas é o sistema de jobs. À lá alguns Final Fantasy mais clássicos, conforme você avança na narrativa e encontra novos membros para a sua party, você desbloqueia classes diferentes, que modificam sua maneira de jogar, bem como as skills disponíveis durante o combate. Com a possibilidade de alternar entre três jobs diferentes a qualquer momento, o jogo oferece uma variedade interessante para o combate que segue um estilo meio hack ‘n slash. Infelizmente, essas boas ideias não se sustentam devido à simplicidade do combate. Nesse sentido, você controla apenas o seu protagonista, que é limitado a um botão de ataque básico e outro que permite acessar atalhos às suas skills.
Sem nenhuma opção eficaz de bloqueio ou esquiva, qualquer profundidade que você possa esperar do combate se esvai. Esse problema se agrava ainda mais quando você percebe que a maior parte dos inimigos não possuem animações prévias para a maior parte dos seus golpes. Sem possuir qualquer possibilidade de evitar tomar dano, o combate se torna uma corrida para ver quem tem mais pontos de vida. Ao lutar contra chefes, isso fica ainda pior, pois muitas vezes sua única opção é se abarrotar de itens de cura, ou se contatar com o velho e repetitivo grinding.
Onírico aos olhos
Para quebrar um pouco o tom negativo desse review, preciso ressaltar que Harvestella possui sim alguns aspectos bastante interessantes. Dentre eles, eu destacaria a sua apresentação como um todo. Embora não seja um jogo com o maior orçamento do mundo, Harvestella é um exemplo de que é possível fazer muito com pouco. Aqui, o estilo anime que pode ser visto nas modelagens e nos retratos dos personagens combinam muito bem com um mundo exuberante e visualmente agradável. Os cenários possuem folhagens vastas, com uma variedade de ambientes bastante ampla. Porém, o que mais faz o jogo brilhar aos olhos é a sua abordagem quase onírica. Em determinados cenários e momentos do dia, é possível ver a vegetação de Harvestella brilhando com suas diferentes cores e estilos.
De maneira geral, o Switch roda o jogo de maneira satisfatória, tanto no modo portátil, quanto na TV, mantendo uma taxa de quadros estáveis na maior parte do tempo. Algumas pequenas exceções acontecem em alguns chefes gigantescos, nos quais é possível perceber quedas no framerate devido a quantidade de coisas e efeitos na tela. Além disso, no modo portátil o jogo pode apresentar uma aparência de “borrado” às vezes, devido à resolução dinâmica. Porém, é algo raro e breve, estando longe de atrapalhar a experiência como um todo.
Para fechar essa parte de apresentação com chave de ouro, Harvestella possui uma trilha sonora belíssima, que combina perfeitamente com essa ambientação onírica e seu progresso mais cadenciado. Com excelentes músicas tanto para os momentos calmos quanto às situações de ação, esse é definitivamente o ponto mais alto do jogo.
Menor do que suas partes
Ao considerar todas as suas partes individualmente, Harvestella é um amálgama de ideias e conceitos interessantes, mas que não foram combinados ou executados como deveriam. Fãs do gênero farming sim poderão se decepcionar bastante ao perceber a pouca importância desse aspecto do jogo. Por outro lado, fãs de JRPGs terão mais a explorar aqui, mas desde que não se importem com o combate problemático ou com o ritmo lento ao avançar a história. Infelizmente, o resultado da combinação inusitada proporcionada por Harvestella é um jogo que é menor do que a soma de suas partes. Uma experiência que poderia agradar fãs de gêneros distintos, mas que parece se esforçar para incomodar seus dois públicos em potencial.
PS: A análise foi feita em um Nintendo Switch através de uma cópia cedida pela Square Enix.