O horror voltou! Não que ele tenha desaparecido em algum momento na indústria dos videogames, mas temos agora uma crescente que promete grandes títulos e também nos convida à nostalgia. Horror cósmico, horror sobrenatural… Bom, temos anúncios para todos os gostos. Apesar do cenário de games Triple A estar repleto de propostas que se relacionem com o medo, ele não esgota todas as possibilidades. Diversos jogos independentes, por exemplo, também buscam gerar uma experiência genuína que misture aflição e diversão. Signalis definitivamente é um deles.
Devo dizer que esta aventura aterrorizante é uma das melhores experiências que pude ter no gênero. É um jogo passível de gerar calafrios, mas também satisfatório e que desperta muita curiosidade. O game indie de survival horror produzido pela Rose-engine e publicado pela Humble possui algo de realmente especial e que o torna um título que vale a pena de ser descoberto e jogado.
Estética retrotech assustadora
Signalis é um game com um visual retrotech, o que significa que ele tem propositalmente uma roupagem de uma época mais antiga no mundo dos jogos. Isto está presente no mundo pixelado, nas personagens, nos cenários, nas animações entre outros aspectos. Aqui, temos um jogo que parece ter sido criado nos anos 90. Uma vez que esta estética é algo proposital, não há de se falar em um demérito. Muito pelo contrário, fazer um game adotar essa roupagem desperta lembranças nos jogadores das antigas e reanima um estilo que por vezes é injustamente atacado.
O aspecto retrô também aparece na tecnologia que o game apresenta em sua lore. Estamos falando de um contexto no qual o ser humano colonizou o sistema solar e, portanto, viagens espaciais são possíveis. Não só isso, existem robôs produzidos em larga escala. Ao mesmo tempo, tecnologias do século passado estão muito presentes no mundo do jogo. Há de se mencionar o uso de fitas de videocassete, monitores de tubo, um rádio e dispositivos pesados, barulhentos e operados manualmente. É uma ambientação que lembra a Guerra Fria, com mensagens criptografadas e uma instalação subterrânea que poderia muito bem ser confundida com um abrigo nuclear que dominou o imaginário de gerações.
Outro ponto importante a ser citado é que o visual também tem a função de mostrar o regime totalitário de Eusan, que é o estágio distópico alcançado pela humanidade após a conquista do sistema solar. Com claras inspirações em obras como 1984, o regime se manifesta em mensagens de propaganda e um rígido olhar de controle sobre seus cidadãos. Mais uma vez há de se destacar o aspecto histórico, uma vez que o século XX foi marcado pela ascensão de regimes totalitários. E ideologias como o fascismo, embora derrotadas no passado, possuem sementes daninhas que ainda hoje se entranham nas sociedades. Portanto, não é absurdo imaginar que o futuro pessimista de Eusan possa existir em algum momento.
Além disso, a estética também carrega um pouco de inspiração que a faz lembrar a de um anime. Isto é graças a Hideaki Anno, uma das referências do game, que é o diretor de Neon Genesis Evangelion. Não por acaso, os dilemas enfrentados por Elster também são existenciais, tendo em vista a obra anteriormente citada. Entre outras inspirações que Signalis expõe estão os trabalhos de David Lynch e também Stanley Kubrick, dois grandes expoentes e responsáveis por trabalhos demasiado influentes na cultura pop. Assim, o jogo também adota para si um verniz surrealista.
Signalis é um game que se pauta, desde o início, em formar para o jogador uma redoma medonha com o objetivo de imersão. Isso é construído, por exemplo, pela paleta de cores mais escuras, por silêncios entrecortados por sons macabros e também pela sensação de confrontar o desconhecido a cada próxima área descoberta. Muitos destes lugares são pequenos e pouco iluminados, despertando um sentimento claustrofóbico que se soma aos aspectos de abandono e solidão. Enquanto os primeiros níveis podem ser um pouco mais aprazíveis, as coisas paulatinamente vão se distorcendo rumo a uma loucura literalmente visceral.
A este momento você pode se perguntar se está diante de uma salada de distopia, horror e retrotech. A grande verdade é que os temas conversam maravilhosamente bem, se encaixando naturalmente e contribuindo para a criação de uma atmosfera poderosa.
Logo de início, Signalis exibe avisos de conteúdo para pessoas fotossensíveis, além de também informar que certas partes do game podem ser violentas ou cruéis. São elementos necessários que mostram que, apesar dos aspectos de outra época do game, ainda assim é importante não esquecer de deixar os jogadores preparados para o que verão.
A jogabilidade de Signalis
Considerando seus visuais, a jogabilidade de Signalis é em sua maior parte do tempo em terceira pessoa a partir de uma câmera superior. Controlamos uma androide, Elster, que caminha por corredores, salas e áreas de uma nave e de uma instalação. Elster possui um rádio, citado anteriormente, operável em diferentes sequências e que recebe mensagens codificadas. É possível ativar ou desativar o rádio, usando-o para chegar a outras áreas ou obter respostas para puzzles. Elster também tem um módulo de mapa à disposição (é uma pena que em determinadas áreas ele não funcione).
O inventário do game é bem limitado, permitindo que se carregue poucos itens consigo. Além disso, mesmo quando um item é equipado ele ainda ocupa espaço. Portanto, o manuseio deve ser feito com cautela – mas há opções para desafogar o inventário, como veremos adiante. Elster possui uma grande variedade de armas à sua disposição, mas estas vão sendo desbloqueadas progressivamente. Temos um revólver, escopeta, uma arma de sinalizador entre outras opções. Também é possível adquirir munição espalhada pelos cenários.
A gunplay do jogo é satisfatória, mas pode ser frustrante algumas vezes. Nem sempre a arma mira no alvo com exatidão, o que pode significar a diferença entre a vida e a morte nas dificuldades mais elevadas. É de se pensar que este aspecto poderia ser mais refinado. Nossos principais adversários são criaturas semelhantes a zumbis e, para derrotá-los, é preciso derrubá-los com as armas e em seguida finalizá-los. Elster pode realizar finalizações sem atirar, o que economiza munição. Mas não basta apenas “matar” os inimigos, é preciso garantir que eles estejam mortos. As criaturas reanimam após determinado período de tempo, e Elster precisa queimá-las para destruí-las em definitivo.
O dano que Elster recebe é avisado através da movimentação da tela e das animações. Quando a vida da personagem está em um nível perigosamente baixo, ela começa a sangrar e o controle vibra simulando seus batimentos cardíacos. É possível recuperar vida usando itens de reparo e também sprays específicos.
Tanto os itens usados para queimar inimigos quanto as munições são escassos, o que incentiva o jogador a evitar confrontos em diversos momentos, correndo por entre as salas ou se esgueirando sem chamar a atenção. Os adversários que não podem ser evitados normalmente são chefes, os quais possuem ataques próprios e necessitam de calma e destreza para serem derrotados.
O jogo apresenta puzzles inteligentes e justos, que necessitam de atenção nos itens espalhados pelos cenários. Muitos desses puzzles têm a ver com a tecnologia retrô que sempre aparece no jogo. É preciso sintonizar ondas de rádio, ligar a energia de parte de uma instalação com peças antigas e resolver códigos em visores datados, entre outros. Os puzzles são bem distribuídos, o que permite uma sensação satisfatória de progresso a cada resolução.
Signalis não possui um sistema de checkpoints ou salvamentos automáticos, dependendo das save rooms para isso. Nelas, em um televisor de luz vermelha, o jogador pode realizar até quatro saves. As save rooms também possuem uma caixa de armazenamento que diminui a pressão que pode ser exercida no jogador por conta do inventário. A caixa de armazenamento possui um espaço indefinido, felizmente. Além disso, o que está armazenado lá pode ser pego em outra caixa de armazenamento em uma diferente save room. Isso não anula o problema de espaço do inventário, mas auxilia bastante. Importa dizer também que Signalis possui uma opção de seleção de dificuldade. Há a dificuldade normal, a difícil e a casual, menos punitiva ao jogador.
Um ponto curioso é que algumas seções do jogo são em primeira pessoa. Estes momentos buscam introduzir um elemento novo ou apresentar uma visão de outro personagem, além de mostrar a dificuldade de Elster em distinguir certas situações.
No geral, a jogabilidade faz uma grande homenagem a clássicos do passado como Metal Gear Solid 2, Resident Evil e Silent Hill. É como uma viagem no tempo que pode nos mostrar algo novo usando uma fórmula do passado.
Narrativa
Signalis possui uma narrativa muito boa, em parte por ela se encaixar como uma luva na atmosfera do game. Controlamos Elster, um robô conhecido como Replika, que se perdeu da copiloto de sua nave. Na busca da companheira, Elster se vê em uma instalação aparentemente abandonada de um dos mundos de Eusan, com os residentes possuindo uma doença misteriosa que os torna monstros.
Em um primeiro momento esta premissa lembra obras clássicas de terror espacial como o perturbador Event Horizon e o aclamado Dead Space, mas não se deixe enganar: Signalis possui sua própria identidade. Eusan usa Replikas como ferramentas, havendo diferentes tipos. A linha entre Replika e humano acaba ficando borrada, com uma ambiguidade estranha. Afinal, o que Elster realmente vivencia? Sua busca é realmente frutífera? Ela a faz pela companheira ou, em última instância por si própria?
Buscar o sentido da vida é uma jornada que pode ser muito solitária. Não só isso, também pode ser um processo frio e melancólico. Elster tem na sua forte convicção de encontrar a parceira um vislumbre do que pode ser sua própria identidade e de quais características a definem. Enquanto abre caminho por hordas de monstros, nossa protagonista começa a questionar a natureza de seu mundo. Afinal, no universo do jogo, que tipo de sonho distorcido e estranho seria a vida?
A jornada de Elster vai se tornando cada vez mais pessoal e bizarra, com vislumbres progressivamente mais incômodos de violência somados a um horror cósmico preponderante. É impressionante como a narrativa conseguiu amarrar a história da androide com a destrutiva hecatombe do mundo que a cerca.
Desempenho, trilha sonora e localização
Como esperado, o game roda bem, sem travamentos (o console utilizado para a análise foi um PlayStation 5). Pude experimentar apenas dois pequenos bugs, um em um puzzle e outro apenas visual, ambos contornáveis.
Em relação à trilha sonora, ela tem momentos ótimos, mas em boa parte do game se mantém apagada. Isto até faz sentido para criar a atmosfera opressiva de Signalis, mas parece que falta algo ali. No geral, porém, a trilha consegue despertar sensações de angústia e medo, desafiando o jogador sensorialmente. Já o trabalho de som utilizado nos monstros e nas armas é muito bom. Vale ressaltar que os diálogos ocorrem por caixas de texto, não havendo dublagem a não ser por sons do rádio.
Um ponto realmente negativo é a falta de localização para o português brasileiro, o que pode ser um problema para jogadores que não possuem conhecimento de outra língua. Existem puzzles com informações que precisam ser lidas e, sem a localização, o progresso torna-se mais difícil.
Signalis vale a pena? Vale muito!
O cenário Indie possui múltiplos projetos e o empenho dos desenvolvedores é sempre muito louvável. Aqui eles foram além e conseguiram criar uma aventura horripilante e madura, o que nem sempre ocorre quando a proposta é apresentar um jogo de survival horror. Elster é uma excelente protagonista e sua missão é contada de maneira sólida e medonha.
A evolução tecnológica deixou os games mais possantes, mas não é possível dizer que jogos mais realistas são ou serão uma escolha universal. Para os ávidos por uma época mais antiga, Signalis é uma ótima escolha. Em tempos de The Callisto Protocol, é interessante dar uma chance a outro projeto com foco em horror espacial e sentir o medo corroer as entranhas ao pensar no desconhecido.
Não só o jogo consegue amarrar bem os temas que escolhe abarcar, como também dá uma ótima abertura para que o jogador reflita sobre eles. O conteúdo de Signalis é muito interpretativo, então podemos imaginar que muitos dos elementos podem ser atribuídos a diferentes questões do mundo real. Neofascismo, fanatismo religioso e autoconhecimento são alguns dos tópicos que podem ser abordados quando pensamos no game.
Signalis acaba sendo um game divertido, curioso e, como um título de survival horror, estressante na medida certa. Seus caminhos levarão o jogador por rotas perturbadoras e cenas cruéis, não perdendo de vista a linha principal que envolve nossa protagonista.
Devo dizer que Signalis foi um dos jogos que mais me impressionou neste ano, tendo o condão de entusiasmar e possuir muita qualidade. Fica aqui o sincero desejo que a Rose-engine tenha muito sucesso e possa alcançar cada vez mais horizontes em seus futuros projetos.
Com uma jogabilidade satisfatória, história interessante e atmosfera densa, Signalis é um ótimo título que se coloca como um dos grandes jogos que compõem a volta do terror para os holofotes na indústria dos games. Estamos diante de uma legítima odisseia onde o objetivo é a busca por propósito e significado existencial, despontando como uma das maiores surpresas do ano.
PS: A análise foi feita em um PlayStation 5 através de uma cópia cedida pela Rose-engine e Humble Games.
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