O espaço domina o imaginário do ser humano desde a sua origem. Pensamentos sobre o tamanho do universo, a influência dos astros e tantas outras indagações perturbam nossos pensamentos. Foi nessa toada que, há pouco menos de um século, o horror cósmico ganhou dimensões nunca vistas antes graças a H.P. Lovecraft. Seus textos sobre o desconhecido, a loucura e o sombrio tiveram forte impacto cultural.
Muitas outras obras na literatura e no audiovisual buscaram transpor este terror e atiçar o que há de mais medonho em nós. Foi assim, por exemplo, com O Enigma do Horizonte, filme que até hoje assusta. No campo dos jogos, tivemos diversos títulos com este foco, como o implacável Bloodborne, o majestoso Dead Space e o recente e incrível Signalis. Em uma onda na qual o terror se coloca como ascendente na indústria de jogos, é de se pensar que o subgênero do horror espacial teria sua importância. É aqui que temos The Callisto Protocol, survival horror da Striking Distance Studios publicado pela Krafton. A aventura, embora tenha como ponto de partida este horror, acaba se afastando dele e representando um apelo muito maior à ação do que ao medo em si.
Com esta primeira percepção, há de se compreender que The Callisto Protocol possui muito mais acertos do que erros e se coloca como um excelente game visceral e exuberante.
Os visuais de The Callisto Protocol
Estamos vendo o despontar da Unreal Engine 5, com modelos cada vez mais impressionantes e beirando o fotorrealismo. Isto não significa, porém, que suas versões antecessoras não possuem qualidade. Isto fica evidente em The Callisto Protocol, que utilizou a Unreal Engine 4 em seu máximo potencial e apresentou um resultado extraordinário, superior a diversos games da atual geração. Esperava-se que o título da Striking Distance tivesse qualidade visual, principalmente por ser crossgen. O que temos é a surpreendente sensação de se estar jogando uma cinemática.
O game se passa em Calisto, satélite de Júpiter, e seus ambientes retratam bem todas as ameaças da “lua morta”. Uma vez que este mundo está tomado por uma grande tempestade quando o jogo acontece, temos grandes espaços com gelo e uma nevasca verossímil. No céu, raios iluminam o mundo por meio segundo, mostrando escarpas imensas em um tom de azul. Em Calisto o cerne do jogo é a prisão Ferro Negro, e este ambiente também possui um refinamento incomparável. Os blocos de celas possuem texturas muito bem-feitas, com detalhes de desgaste no metal. Cores mais escuras se sobressaem, com o preto aliando-se ao amarelo e azul para criar uma paleta intimidadora. Os horrores que atingem a prisão também deixam suas marcas. Corpos com membros mutilados, dutos de ventilação com sangue e salas pegajosas com casulos marcam a experiência. Cantos escuros, passagens estreitas, sombras dispersas, escapes de fumaça e um verniz de abandono tornam Ferro Negro um lugar de aparência hostil e sufocante.
Em relação aos personagens, a Striking Distance também caprichou. Temos detalhes como poros na pele e rugas nos olhos, além de expressões faciais muito realistas. O trabalho não se restringe a Jacob, o protagonista, mas sim se manifesta em todos os personagens. Tratando-se de Jacob, entretanto, o tratamento do seu modelo de personagem é de se dar parabéns. Seus olhos mostram o desejo pela sobrevivência. Seu rosto mostra diversas reações que se manifestam igualmente em cinemáticas e na gameplay. Na testa e na nuca, suor escorre representando o calor de Ferro Negro. Todo o trabalho no rosto do protagonista é, em suma, muito convincente.
Os uniformes e trajes usados por Jacob são, de fato, muito detalhados. Além disso, eles podem ficar marcados pelo ambiente: Jacob pode se sujar de sangue, resíduos, neve ou mesmo ter o corpo chamuscado. É uma ótima interação com o mundo ao redor que ajuda a ditar o ritmo impressionante dos visuais de The Callisto Protocol.
No que se refere aos monstros, todos são muito bem feitos. Estamos falando aqui de criaturas semelhantes a zumbis e o jogo faz jus a deixá-los medonhos com pústulas, sangue, dentes afiados e formas bizarras. É uma pena, porém, que inimigos de uma mesma variante não possuam diferenciais entre si.
Levando isso em conta, os gráficos de The Callisto Protocol são muito realistas e competentes, destacando-se como o ponto alto do game.
Jogabilidade
Falar da jogabilidade de The Callisto Protocol envolve diversas nuances que não serão unanimidade entre os jogadores. Para o bem ou para o mal, temos aqui mecânicas bem peculiares.
O game é em terceira pessoa, com uma câmera por cima do ombro. Jacob é pesado, o que fica nítido para o jogador com seus movimentos. Embora pareçam lentos, eles refletem com mais precisão uma jogabilidade realista com um protagonista humano. O personagem pode em sua jornada correr, subir em objetos e escadas, pular obstáculos, agachar e também rastejar.
O paradoxo é que, embora os movimentos de Jacob sejam mais lentos, estamos diante de um jogo moldado para a ação quase ininterrupta. A atmosfera de survival horror existe, mas parte disto é sacrificado em prol de confrontos contra os inimigos. Prepare o controle: há muitos combates pela frente.
O game possui puzzles muito simplistas, não havendo nada nesse sentido que realmente interrompa o progresso do jogador. Normalmente eles consistem em atividades fáceis que envolvem ligar disjuntores, achar fusíveis para portas ou obter códigos de segurança de algum guarda. A GAR, luva antigravitacional que usamos, também serve para abrir dutos de ventilação, mas percebe-se que ela poderia ser mais utilizada no game. Outra característica são os colecionáveis, arquivos de texto e áudio que ajudam a entender melhor a lore.
Temos à disposição recursos que lembram em muito Dead Space, título de sucesso cujo diretor é o mesmo de The Callisto Protocol. Entre as semelhanças, além do modo de uso da GAR, temos uma mira holográfica e um indicador de vida nas costas do protagonista. No caso de Jacob, trata-se de um dispositivo chamado de “Núcleo” implantado em sua nuca e que brilha em verde, laranja ou amarelo a depender do seu nível de saúde.
A travessia por Calisto é feita com uma interface bem limpa e o jogo possui uma enorme linearidade, sendo intuitivo ao mostrar para onde Jacob deve ir. Há caminhos alternativos, mas eles eventualmente desembocam na mesma saída para que o protagonista possa progredir em seus objetivos. Por conta destas escolhas, não há um mapa disponível.
E o combate?
Jacob possui diversas armas à sua disposição. Começamos com uma faca e um machado, mas logo trocamos este último por um bastão elétrico de controle de multidões. Para ataques à distância, temos acesso a armas de fogo dos mais variados tipos, cada uma com cadência, dano e precisão diferentes. O combate à distância também conta com a ajuda da GAR, que pode agarrar e lançar tanto objetos quanto inimigos. Jacob pode usar itens do ambiente ao seu favor: há, por exemplo, paredes com estacas e explosivos que podem acertar monstros. As já citadas hélices e trituradores são um prato cheio para o uso da GAR, eliminando inimigos em uma chuva de sangue.
As animações de disparos, recarga e troca de armas são bem realistas, mostrando com exatidão o manuseio realizado pelas mãos de Jacob enquanto pega cápsulas ou usa um módulo diferente. Embora isto seja um deleite visual, acaba esbarrando na mecânica de troca de armas que é ruim. Por vezes, em meio a combates frenéticos, a animação de trocar o armamento é cancelada porque Jacob precisa realizar uma esquiva ou bloqueio e isso é prejudicial quando é preciso um saque rápido.
Para obter balas e saúde, Jacob pode pisar nos inimigos caídos e fazê-los soltar itens. Outra forma de obter saúde é conseguindo injetores que aumentam o nível de vida mostrado no núcleo quando colocados no pescoço de Jacob. A animação para isto não é rápida e pode ser interrompida por inimigos, também.
Todas as armas podem ser atualizadas no chamado reforjador, uma impressora 3D. Ele pode melhorar aspectos das armas, da GAR e do bastão, além de criar balas e injetores de saúde. O reforjador funciona com créditos Callisto, obtidos de monstros, armários ou vendendo itens como conversores, chips de impressora ou, em caso de necessidade, as próprias balas ou injetores de saúde. Como os créditos são escassos, alguns upgrades podem acabar ficando para trás por custarem muito. Pode ser, talvez, algo para incentivar os jogadores a realizarem um eventual e futuro New Game Plus.
Os combates são sempre pesados e os golpes de Jacob possuem impacto, o que é algo muito positivo. O jogo possui um excelente sistema de desmembramento e decapitação, com inimigos que atacam até mesmo sem a cabeça. Golpes podem ser bloqueados e partes do corpo do adversário removidas antes de finalmente matá-lo. É algo muito visceral, o que realmente é muito bem-vindo para um jogo desse tipo.
A polêmica, entretanto, é que o combate corpo-a-corpo depende também da esquiva. A mecânica, que visualmente lembra um pouco o que foi implementado em The Last of Us Part II, é acionada movendo o analógico L para a direita ou esquerda durante os confrontos. O comando foge um pouco do que é tradicional para os jogos, onde apertamos um dos botões (normalmente X ou O) junto com o analógico. É algo que pode confundir os jogadores e fazê-los ter uma impressão errônea a respeito dos combates. Para além da esquiva, o jogador também pode bloquear direcionando o analógico L para baixo.
Um problema notório do game surge quando temos vários inimigos em tela. Jacob não é tão rápido e só conseguimos focar em um deles por vez. Ataques nas costas ou pelos lados podem ser fatais para o protagonista e, nesse tipo de situação, a câmera não ajuda. É de se pensar que uma mecânica diferente poderia auxiliar, como o protagonista sendo agarrado pelo inimigo que está nas costas ao invés de levar dano sem oportunidade de defesa.
Inimigos em The Callisto Protocol
The Callisto Protocol possui uma boa variedade de inimigos. Todos são criaturas semelhantes a zumbis, com corpos distorcidos e aspecto monstruoso. Temos parasitas e cabeças com tentáculos, para começar pelos menores. Em humanos vemos zumbis mais simples que correm ou rastejam. Mas cuidado: quando levam dano suficiente, alguns deles liberam tentáculos que devem ser atingidos a tempo por uma arma de fogo ou farão a criatura evoluir para uma nova mutação, o que na prática cria uma segunda e mais difícil luta com a criatura.
Os fãs de The Last of Us podem sentir-se familiarizados com alguns inimigos. Temos uma espécie de barata humana cujo modo de agir se assemelha aos perseguidores, escondendo-se em cantos escuros e depois atacando. Outros adversários familiares à franquia da Naughty Dog são zumbis cegos e que se movimentam de acordo com o som, podendo ser atacados furtivamente com uma faca. São criaturas que lembram os famosos estaladores.
Para além disso temos inimigos que atacam à distância, rastejam e explodem. Cada um destes monstros necessita de uma abordagem diferente e imprimem variedade e dinamismo à gameplay.
Os chefes do game são bastante escassos. São apenas dois, sendo que um se repete por mais três vezes após sua primeira aparição. É uma oportunidade desperdiçada de criar situações novas que desafiem o jogador.
Mas esta não é a única característica que pode tornar este aspecto do game divisivo. Os bosses são extremamente fortes quando comparados aos inimigos comuns, podendo matar Jacob com apenas um hit. A mecânica de desviar, neste caso, é muito necessária para conseguir sobreviver e deve ser usada em conjunto com as armas de fogo. O problema destas lutas é que elas podem ser demoradas e um deslize de Jacob faz tudo recomeçar, o que torna estes embates eventualmente frustrantes. Além disso, em duas boss battles inimigos comuns surgem, distraindo o jogador e atrapalhando a luta contra o chefe. No geral, podemos dizer que estes combates são pouco inspirados e poderiam ser melhor desenhados para garantir a diversão do jogador.
Além de beber de Dead Space no tema e em mecânicas, The Callisto Protocol também o faz nas animações de mortes do protagonista. São diversas e muito brutais, envolvendo desmembramento, decapitação e a tomada por um parasita, entre outras fatalidades. Resumindo, há muitas formas de ver Jacob sofrendo aqui. Embora aumentem o elemento gore do game, algumas animações de morte podem não soar muito realistas, além de levarem tempo para terminar e tornando-se simplesmente irritantes próximo do final do game.
História
The Callisto Protocol desde sempre foi pensado como um título com foco em narrativa e isto é visível no esforço para criar uma história convincente. A começar pela lua Calisto, que é um destino possível para que se estabeleça uma colônia humana no futuro.
Se passando 300 anos após o tempo presente, o game começa com um ataque terrorista em Europa, outra lua de Júpiter. Logo após conhecemos nosso protagonista, Jacob, que por um infortúnio do destino vai para a prisão de Ferro Negro. Imediatamente após sua chegada um surto zumbi ocorre no lugar, fazendo Jacob ter de lutar pela sua sobrevivência. Nosso protagonista é clichê: trata-se de um homem comum submetido a uma situação de estresse e que precisa agir para salvar o dia. Uma fórmula muito batida, mas que ainda pode funcionar como neste caso.
The Callisto Protocol, de fato, tem um elenco de peso. Josh Duhamel, intérprete de Jacob, foi vencedor do Emmy. Outros nomes como Karen Fukuhara (Kimiko em The Boys) e Sam Witwer (Starkiller em Star Wars: The Force Unleashed e Deacon St. John em Days Gone) fazem o roteiro andar com seus desejos e esperanças.
A história possui uma duração satisfatória, não se alongando demais para evitar repetição. Entretanto, há alguns becos narrativos que não levam a lugar algum e podem frustrar o jogador. Sequências que aparentam levar ao sucesso são interrompidas por quedas de Jacob no ambiente. Este recurso acaba ficando cansativo, por vezes.
Apesar disso, o roteiro de The Callisto Protocol é sólido e se aventura na tentativa de criar um universo novo com curiosidade e sempre prendendo a atenção do jogador. Vale, porém, um alerta: o terror no game existe, mas como mencionado anteriormente dá lugar à ação. Não espere um jogo repleto de sustos, The Callisto Protocol vai em outra direção para criar uma identidade própria – e consegue. Embora ainda se mantenha associado a Dead Space, percebemos ali que há realmente algo novo e isto é perceptível nos elementos desta IP que a diferenciam de outras como a CJU, a Via Exterior, os mistérios etc.
Um ponto divisivo é o fato do game possuir muitas pontas soltas, embora isto claramente seja feito de propósito. Embora o jogo encerre sua história ao final, há outros arcos e segredos a serem desvendados, o que faz The Callisto Protocol candidato a uma sequência ou mesmo a se tornar uma saga de games, assim como Dead Space.
Desempenho, localização e trilha sonora
The Callisto Protocol roda em dois modos diferentes no PlayStation 5. Um dos modos prioriza resolução, buscando 4K e 30 frames por segundo. Já o modo performance tem como foco os 60 fps. O ray tracing, presente no modo de resolução, é competente e entrega uma melhoria visível na iluminação e reflexos. No modo performance, o game costumou rodar bem. Entretanto, em algumas seções houve quedas de frames, especialmente na segunda metade do game. Não foi algo que aconteceu durante os combates e não atrapalhou a experiência, mas pode ser uma questão a ser verificada e eventualmente corrigida através de um patch.
No que se refere à localização, ela é bastante competente. Não só as falas dos personagens são legendadas, como também os registros e indicações no ambiente como portas trancadas e informações do reforjador.
Como é de se esperar em um game de survival horror, a trilha sonora é caprichada e responsável por temperar seções mais assustadoras do game, além de ditar a narrativa como um todo.
O veredito para The Callisto Protocol
The Callisto Protocol vale a pena? A resposta é sim, e muito. Embora acabe se focando mais na ação e menos no horror, o game entrega uma experiência maravilhosa, com a sensação de se estar jogando uma cinemática interativa graças aos visuais incríveis, os combates viscerais e uma história coesa e interessante.
Há problemas que arranham o game como a falta de criatividade nas lutas contra os chefes e múltiplos inimigos, algumas decisões na história e a simplicidade de puzzles. Apesar disso, estes erros não impedem que The Callisto Protocol seja um grande expoente para o PlayStation 5 e um título obrigatório para os fãs de survival horror, narrativa e ação. Ficamos na torcida para ver mais de Jacob e deste universo no futuro, com novas possibilidades, mundos e respostas.
PS: A análise foi realizada em um PlayStation 5 a partir de uma cópia cedida pela Striking Distance Studios e Krafton.
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