GaaS e PlayStation juntos numa mesma frase sempre é algo polêmico. A companhia havia anunciado planos ambiciosos seguindo esse modelo de negócio. A ideia original era lançar 12 jogos como serviço até o final de 2025. Contudo, após uma revisão interna realizada com o auxílio da Bungie, a ideia passou a ser lançar “apenas” 6 GaaS.
2023 foi um desastre para a PlayStation nesse sentido. O projeto da Deviation, que era promissor pelo envolvimento dos criadores de CoD, parece passar por sérios problemas (o cofundador saiu da empresa). A equipe de Marathon, o próximo lançamento da Bungie, foi reduzida e o projeto está sofrendo um soft reboot. E ontem (14), o aguardado multiplayer de The Last of Us foi cancelado pela Naughty Dog.
A ideia já não era bem aceita pela base de fãs mais vocal da marca, que prefere declaradamente os games no template narrativo da PlayStation. E, bom, com essas notícias nada agradáveis, fica difícil acreditar no sucesso da empreitada. Contudo, o que a maioria esmagadora dos fãs não entendem é que os GaaS para a PlayStation são uma necessidade e não uma escolha. Explicarei minha visão nesse texto.
O modelo de negócios de jogos singleplayer
A PlayStation se tornou um colosso e a líder do segmento graças aos jogos com foco na narrativa. Isso é um fato incontestável. Contudo, o mundo evoluiu e agora temos um choque de públicos. Os fãs de longa data da marca viveram a era analógica e agora estão imersos no mundo digital. Porém, os consumidores mais novos cresceram com um contato mais forte com jogos como serviço. League of Legends, World of Warcraft, CS, Call of Duty, Fortnite, Free Fire, PUBG, Minecraft.. Uma empresa do escopo da PS não pode focar seus esforços em um único público.
Graças ao “template” estabelecido pela própria PlayStation (lê-se jogos cinematográficos, com visuais praticamente fotorealistas e setpieces ambiciosos), a marca criou uma armadilha para si mesma. Seus principais projetos levam pelo menos 5 anos para serem produzidos e apresentam um custo que varia entre U$200 a U$250 milhões de dólares. E isso gera uma série de problemas. O ciclo de vida dos jogos narrativos está cada vez mais curto por diversos motivos.
Temos um nível de concorrência maior por conta do alto volume de lançamentos e o comportamento do consumidor médio foi drasticamente modificado pela agressividade dos serviços. Em resumo, eles estão esperando cada vez mais por descontos ou até que o game entre no serviço. Em decorrência disso, os games com foco na história estão recebendo descontos agressivos de 20-30% em menos de 90 dias após seus lançamentos. (Um exemplo: FF16 recebeu 20% de desconto após 2 meses de lançado)
Agora vamos recapitular um pouco: O produto leva pelo menos 5 anos para ser produzido. Custa ao menos U$200 milhões de dólares. É lançado em um mercado altamente competitivo, onde os consumidores esperam cada vez mais por descontos. E o ciclo de vida está cada vez menor, onde o buzz do game muitas vezes dura dias e o estúdio é obrigado a descontar o preço em pouquíssimos meses. Em cima disso tudo, temos consumidores cada vez mais exigentes, demandando por gráficos cada vez melhores e um tempo menor para os projetos serem lançados.
Para sanar parte desses problemas, as publishers estão apostando cada vez mais em duas tendências: cortar conteúdos do jogo base, vendendo-os separadamente como DLCs e vendendo o acesso antecipado através de edições Deluxe que possuem um SRP (preço sugerido) mais alto. Apesar dessas soluções ajudarem a estancar o problema um pouco, elas não são efetivas para cuidar de um outro problema.
O problema do fluxo de caixa
De grosso modo, o fluxo de caixa é basicamente a quantidade de dinheiro que entra e sai da empresa. Ai você deve estar se perguntando, qual a relação dos jogos SP com isso? Já determinamos aqui duas coisas: os jogos narrativos da PlayStation possuem um ciclo de produção longo e um ciclo de vida curto.
Agora te convido a enxergar cada estúdio como uma entidade separada. Vamos pegar o exemplo da Sony Santa Monica, o estúdio responsável por God of War:
2018: God of War
2022: God of War Ragnarok
O estúdio levou 4 anos para entregar uma sequência de God of War. Um tempo de produção aceitável. O problema é que o fluxo de caixa dos estúdios focados em SP recebe golpes severos entre essas produções. God of War (2018) vendeu muito bem, contudo, o jogo recebeu descontos agressivos em pouco tempo, diminuindo a receita gerada pelo mesmo. E isso tenha em mente que nem todo estúdio tem uma IP como God of War para gerar uma receita recorrente OK entre as produções.
Daí nesses casos, a PlayStation como um todo precisa subsidiar os custos. Até aí tudo bem. As vendas na PS Store são gigantes, a PS Plus tem um número bom de assinantes e gera uma receita ótima. Contudo, a marca está inserida em um ambiente altamente competitivo e de grande consolidação. Os títulos que mais geram receita são de companhias concorrentes e recentemente vimos o quanto isso é um risco.
Call of Duty era uma galinha de ovos de ouro e agora pertence a maior rival da marca. A PlayStation foi obrigada a “abaixar a cabeça” e assinar um acordo para manter a franquia na plataforma por 7 anos pois não se pode dar o luxo de perder os milhões gerados em receita anualmente. Se a empresa focar exclusivamente em produzir jogos narrativos, não vai demorar para que o fluxo de caixa tenha mais saídas do que entradas, prejudicando a saúde financeira do negócio.
Com fãs cada vez mais exigentes, a companhia precisa aumentar o tamanho dos estúdios para que o processo de produção seja mais rápido e para que mais produtos sejam feitos. Só que aumentar estúdios significa contratar mais desenvolvedores, o que consequentemente aumenta a folha de pagamentos e os custos.
Agora some com tudo que eu falei – consumidores mais exigentes, esperando cada vez mais por descontos ou jogos em serviços como Game Pass e PS Plus. Isso unido ao modelo de negócio de jogos SP que dependem exclusivamente da venda direta. É um risco extremamente alto e que tem feito muitas publishers gigantescas acionarem o modo de defesa, vulgo, investimento massivo em remakes e remasters. É mais barato e, óbvio, menos arriscado, lançar um produto já testado e aprovado no mercado. E, bom, a estratégia tem dado super certo para a Capcom. É tanto que a SEGA pretende copiar!
Pressão dos acionistas e o “baixo” lucro líquido da PlayStation
Somado à pressão por parte dos consumidores, a PlayStation também precisa atender os anseios dos acionistas, um público altamente importante para toda empresa listada em bolsa. Vamos observar uma estimativa dos jogos que mais geraram receita em 2022 de acordo com o VG Sales:
- Honor of Kings: U$2.8 bilhões
- PUBG: U$2,55 bilhões
- Dungeon Fighter Online: U$2 bilhões
- Genshin Impact: U$1,9 bilhões
- Candy Crush Saga: U$1,3 bilhões
- Pokémon Scarlet/Violet: U$1,24 bilhões
- Lineage: U$1,23 bilhões
- Elden Ring: U$1,2 bilhões
- Roblox: U$1,1 bilhões
Na lista com 9 jogos, apenas 2 não são GaaS. Inclusive, a lista destaca um planejamento que a PlayStation tem feito para não ficar “pra trás” nessa corrida. A companhia foi ágil em se unir com a miHoYo, disponibilizado Genshin Impact e Honkai: Star Rail nos consoles. Outro ponto de destaque foi o anúncio da parceria recente com a NCSoft, a empresa responsável por Lineage, o sétimo jogo que mais gerou receita em 2022. Além disso, a marca tem se aproximado da Nexon e diversos games da publisher, como The First Descendant, chegarão no PS5.
O problema nisso tudo é que todas essas IPs não são da PlayStation e o mercado está passando por uma consolidação tremenda. O quinto jogo que mais gerou receita em 2022, Candy Crush Saga, pertence a King, companhia que foi adquirida pela Xbox. A ideia da PS com os GaaS é reduzir drasticamente sua dependência em IPs de terceiros.
A PlayStation gera uma quantidade massiva de receita, mas o lucro líquido da marca tem caído consideravelmente nos últimos anos – muito pela “demora” em lançar projetos e pelo frenesi de compras (lembre do fluxo de caixa – produtos com ciclos longos de desenvolvimento e quadro de funcionários inchado após adquirir dezenas de empresas). Vamos observar a queda do Operating Income (receita menos custos operacionais) da PlayStation:
- 2017: 8.1%
- 2018: 9.1%
- 2019: 13,5%
- 2020: 12,1%
- 2021: 12,9%
- 2022: 12,6%
- 2023: 6,9%
- 2024: Atualmente está em 6,3% e a previsão pro ano fiscal completo é de 6,4%
A queda para o período é normal, afinal, entre 2019 e 2022 a companhia viveu um boom graças à pandemia. Contudo, com o frenesi de aquisições, a empresa se colocou em uma situação bem delicada com uma margem para erros baíxissima. Não é atoa que a resposta da empresa está sendo demitir funcionários, fechar estúdios (RIP PixelOpus) e cancelar projetos.
As falhas da PlayStation
É claro que a necessidade da PlayStation por IPs que sigam o modelo de negócio de GaaS não isenta ela de erros. A comunicação por parte da marca falhou miseravelmente. Projetos como Concord e Fairgame$ (que nome bizarro!) foram simplesmente jogados na tela para um público pouco propenso a aceitar eles de braços abertos.
Outro ponto é que, sim, a Naughty Dog precisa de um jogo online para gerar receita recorrente, ajudando a custear as ambições gigantescas do estúdio, porém, o caminho não é obrigar desenvolvedores sem experiência a construírem um projeto que eles não querem. Isso é a receita pra dar merda vide Marvel’s Avengers e Babylon’s Fall.
A companhia começou a trilhar um caminho que é sim necessário para garantir o futuro da marca, mas não soube comunicar isso com seus consumidores e tampouco estruturar o plano da melhor forma possível. É uma falha e que precisa ser corrigida antes que seja tarde demais.
Como contraste, temos Helldivers 2. O primeiro jogo foi muito elogiado em sua época e tem uma base de fãs até hoje. O estúdio sabe o que faz, a precificação do game está justa e ele recebeu incrementos absurdos em relação ao anterior. Esse é o caminho! Uma iniciativa mais orgânica e que mantém a visão artística dos desenvolvedores que querem, de fato, arriscar nesse modelo de negócios. Não é mais um jogo sem alma projetado simplesmente com o intuito de gerar lucro.
Uma mensagem pessoal para os fãs de longa data
Se você leu até, aqui, parabéns. O texto ficou bem maior do que eu imaginava. Eu sou um consumidor da PlayStation desde o PSX, obtido por meu irmão lá no começo dos anos 2000. Sim, já são 2 décadas consumindo a marca e me emocionando com suas histórias.
Eu entendo e sou como você: eu também prefiro os jogos narrativos. Pra mim, o ápice do storytelling nos games é God of War 3. Não existe nada até hoje no meio que se aproxime, PRA MIM, da jornada emotiva de Kratos em busca de vingança. Eu sei que você pode não ter interesse em jogos multiplayer, que está cansado do template de 3 ou 4 malucos atirando em alguma coisa.
Mas não podemos ser egoístas. Uma empresa não existe somente para atender nossos desejos, apesar de que é excelente ver um jogo dos sonhos ganhando forma (God of War Remake, por favor!). Tenho uma relação de certa forma emotiva com a PlayStation. Durante os piores momentos da minha vida, tinha um console da marca e alguma história marcante para ser experimentada. Muito mais do que uma fuga, as histórias esculpidas pelos estúdios muitas vezes também foram cura.
É por isso que eu torço para que os GaaS deem certo e que reconheço a importância deles. Eu quero que a marca dure, quero poder jogar a próxima história ou o próximo shooter online da empresa com meus filhos. É uma parte importante de mim. Por isso, fica o pedido: mantenha a mente aberta. Claro que não é pra aceitar tudo, não vejo a menor chance desse Fairgame$ vingar por exemplo, mas não limite seus gostos à um único molde. Nos vemos por aí!