Com a expansão da proposta multimídia no entretenimento, cada vez mais vemos estilos e conceitos se misturando: filmes encontram os games, séries se tornam histórias em quadrinhos etc. Assim, adaptações ganharam força, bem como projetos autorais que se aproveitam dessa comunicação plural e voltada para todos os tipos de públicos.
Enquanto maior parte dessas apostas dizem respeito à chamada cultura pop, outras investem em termos mais maduros, introduzindo uma maior responsabilidade ao educar e mostrar para as pessoas que projetos digitais podem impulsionar a evolução humana e a individual. É assim que surge Dreams of Another, game em modalidades flat e realidade virtual que vai além de tudo já mostrado.
Por um lado, é bom. Mas por outro, o público casual pode gerar uma certa resistência logo nos primeiros segundos da campanha. Porém, a essência de algo transformador e de uma jornada poderosa é nata e cumpre muito bem seu papel como algo programado para mexer com o coração humano.
Os sonhos dos sonhos
Um soldado incapaz de atirar. Um homem de pijama em seu sono eterno. Objetos que guardam lembranças e refletem sobre si. Paisagens surreais que marcaram a vida de dezenas, centenas e milhares de pessoas. Tudo existe em um mundo que parece não existir, mas já existiu.
No fim, sonhamos para refletir, para repensar comportamentos, reviver coisas deixadas para trás, questionar decisões e até mesmo planejar nossos próximos passos. E tudo está interconectado em uma realidade onde o concreto e o abstrato coexistem. Você nunca será julgado lá.

Dreams of Another é um jogo de aventura com uma proposta totalmente experimental. O título mistura mecânicas de tiro em terceira pessoa com walking simulator, tendo a narrativa descentralizada como seu ponto forte.
Com uma campanha em torno de 10h de duração, o novo game do elogiado estúdio Q-Games, de PixelJunk Eden, é totalmente compatível com modalidades flat e realidade virtual, oferecendo suporte aos recursos do DualSense e dos controles Sense caso seja jogado no PlayStation 5. E essa compatibilidade surpreende por ser muito funcional.

Os materiais promocionais de Dreams of Another e a descrição “destruir para construir” deram a ideia de uma experiência sandbox, mas o jogo está longe disso. A construção é totalmente conceitual e vinculada ao roteiro (algo quase subjetivo), enquanto a jornada é bastante linear e intuitiva — com guia de progressão caso upgrades sejam obtidos.
Uma aventura para se identificar
Apesar da história de Dreams of Another ser bem determinada (mas nem um pouco óbvia), ela se destaca mesmo por se tornar algo bastante único com o passar das horas. Os desenvolvedores criaram um experimento social subjetivo, onde cada pessoa tirará suas próprias lições e se identificará à sua maneira.
Durante a campanha, você acompanha a jornada de um militar, de um homem no pijama, de uma família de toupeiras, de uma criança apaixonada pelos sons do piano e de um palhaço triste. Cada uma delas se desenrola de forma especial e relativamente intrínseca, mas sem se prender a rótulos narrativos.

Basicamente cada capítulo foca em um arco, com algumas sub-histórias sendo contadas por figurantes e eventos específicos. Além disso, Dreams of Another contém um sistema de memórias onde interações com dezenas de objetos ativam diálogos e reflexões existencialistas. E apesar delas parecerem infantis e excessivamente didáticas, elas são dotadas de sentido.
O game, por ocorrer quase inteiramente dentro de sonhos, também tem um caráter estéril, mas potente. Ele passa a impressão de trazer fortes inspirações dos dramas psicológicos de Yorgos Lanthimos, onde personagens parecem não ter vida mesmo diante de situações exageradas, absurdas ou incabíveis. Mas apenas parecem…

Essa ideia pode ser bastante divisiva, principalmente por tornar Dreams of Another muito experimental e educacional. distanciando-o de um jogo propriamente dito. Mas, ao mesmo tempo, ela transforma o game em uma jornada de autorreflexão cheia de preciosismos e questões relevantes que a correria das novas vidas nos impedem de praticar.
E essa história de tiro em primeira pessoa?
Sim, Dreams of Another é um jogo de tiro em terceira pessoa. Toda a mecânica central do game gira em torno desse sistema, onde o protagonista precisa atirar em bolhas abstratas e tornar o cenário mais visível, com o objetivo de encontrar caminhos e pontos de interesse.
Há fortes similaridades com a perspectiva dos survival horror mais recentes, como Dead Space e Resident Evil 4, com câmera over the shoulder e funcionalidades de roda de armas, carregamento e arremessáveis. Porém, as balas são infinitas no game e não há qualquer necessidade de você se preocupar com gerenciamanto.

Já os projéteis são limitados, mas com muitas aspas — coletar itens no mapa permite trocá-los por mais arremessáveis com um NPC. Armas de fogo, por exemplo, vão limpando os cenários de forma gradual, enquanto projéteis como granadas e um lança-foguetes abrem grandes áreas (quase mapas inteiros, em alguns casos). Isso funciona muito bem para a ideia de Dreams of Another, conversando tanto com a proposta de “sonhos embaçados” quanto com a narrativa do homem que não conseguia atirar.
O tédio que as pessoas precisam
O abstracionismo exagerado de Dreams of Another pode tornar a aventura chata para alguns. Seu ritmo lento no começo da campanha, a necessidade de refazer loops de sonhos e a repetição de alguns eventos não contribuem com projetos mais épicos, afastando esse tipo de jogo do que a bolha considera “mainstream”.
Porém, com pouco esforço, você verá que o título é bem maduro e único. Do tipo que já nasce cult, o game se destaca por sua maturidade quase cinematográfica, onde trilha sonora, atmosfera e identidade conversam muito bem do início ao fim. Há momentos emocionantes, engraçados e absurdos, criando uma receita de bolo acessível para todos os públicos.

Vale lembrar que Dreams of Another é totalmente compatível com o PS VR2 e traz boas inovações nos recursos dos controles Sense e do DualSense. É muito interessante usar os gatilhos adaptáveis, enquanto as balas conversam com o jogador por meio do feedback tátil.
Em termos de otimização, a grande quantidade de informações na tela e a existência de cenários que são quase orgânicos prejudicam um pouco o desempenho, com quedas ocasionais de FPS. Porém, o jogo se revela como uma experiência sólida em termos técnicos, onde seus visuais em pixel art são cheios de charme e extremamente ricos em detalhes bem representados.
Dreams of Another não esconde sua essência
Desde suas primeiras amostras, Dreams of Another já vem se mostrando para o que veio: um game que foge completamente das convenções do mainstream e é dotado de identidade. Seu gameplay funcional e conceito único resultam em uma experiência agradável e consistente, mesmo demorando para engrenar nos termos narrativos.
A descentralização narrativa transforma o jogo em uma espécie de alegoria disfarçada, onde as figuras de linguagem são exploradas com o máximo de propriedade. O título é extremamente comunicativo, mas isso pode gerar maior resistência de quem busca variedade, eventos de proporções épicas e carisma.
Não há como negar que Dreams of Another tem um potencial transformador de vidas. Suas discussões pontuais e a simplicidade didática levam o título a ser quase uma aula, acompanhando debates que são relevantes para as sociedades modernas desde quando ganharam autonomia — tanto em sentido coletivo quanto individual.
Você pode acabar detestando o jogo após testá-lo. Mas o fim da jornada trará algumas respostas (ou ao menos reflexões) que podem fazer a diferença nos mais diversos campos de sua vida. O título fica disponível nesta semana para PS5 e PC.
Dreams of Another é uma experiência transformadora que vai para o lado "ame ou odeie".
- Narrativa
- Jogabilidade
- Desempenho
- Visuais
- Som
- Diversão