Imagine que em um belo dia, você vá até o quarto de um hotel antigo no meio de uma cidadezinha pequena para ter uma consulta com um psicólogo. O profissional começa a lhe fazer perguntas difíceis, numa tentativa de colocá-lo no caminho para enfrentar as verdades que você tanto se esforça para esconder.
Após uma sessão difícil, você resolve se deitar para descansar, se depara com o som de um trovão e um acidente de carro, dorme, acorda e… se depara com todos os acontecimentos de novo. Essa é a exata proposta de Rue Valley, um jogo com foco 100% narrativo desenvolvido pela Emotion Spark Studio com publicação assinada pela excelente Owlcat Games.
Será que a história protagonizada por Harrow vale seu tempo e dinheiro? É isso que você vai descobrir nesta review de Rue Valley.
Fantasticamente comum
Logo no começo da jornada, precisamos definir os atributos de Harrow. É a partir desse momento que já ficamos cientes de que estamos jogando algo bem diferente do comum. A árvore de “talentos” do protagonista é basicamente um quiz de personalidade.

Os pontos de personalidade alocados definem se Harrow será mais introvertido ou extrovertido, sensível ou indiferente, impulsivo ou calculista, e por aí vai. Rue Valley é um jogo que flerta com o gênero immersive sim; logo, a personalidade configurada acaba desbloqueando ou bloqueando opções de diálogos e ações no mundo do jogo.
Como mencionei no começo do texto, a peça central da narrativa é o loop. Temos exatos 47 minutos (tempo do jogo, e não real) para coletar o máximo de pistas possíveis para saber o que está se passando na cidade e tentar escapar. Ficar andando pelo cenário faz com que o tempo passe devagar, contudo, ao realizar ações, os minutos são gastos como se fossem uma espécie de recurso.

Por exemplo, você pode sentar em um banco perto de uma loja e ficar esperando ali até que alguma coisa inesperada aconteça. O tempo vai avançar alguns minutos e o personagem pode ver outro saindo da loja. Isso automaticamente vai se transformar em uma informação no mapa mental, podendo abrir novas opções de diálogos ou ações inéditas.
A parte mais difícil de gerenciar o tempo do jogo é, bom, não ficar completamente imerso na trama. Os diálogos são excepcionais e buscam explorar a psique humana. Todos os habitantes da cidade possuem seus dramas e demônios internos, e é fantástico ir investigando as pistas e ver como as subtramas se entrelaçam.
Vale destacar um aspecto importante do jogo: Rue Valley aborda muito o tema de saúde mental e, em virtude disso, a equipe responsável pela narrativa do game conta com um profissional médico para fazer isso da melhor forma. O estúdio também se aliou à Movember, uma instituição com quase 20 anos de experiência em saúde mental masculina.
Apesar de ser um jogo, a história faz um trabalho sublime em não só normalizar a terapia, mas enfatizar o quanto ela é importante. E isso é feito de uma forma genial. Como a maioria dos homens, Harrow inicialmente é extremamente resistente à terapia, e isso gera diálogos sarcásticos e conflituosos com o seu terapeuta.

À medida que os loops vão acontecendo e as pistas se acumulam, Harrow vai se abrindo mais, revelando seus traumas e gerando uma conexão fantástica com quem joga. Eu gosto de classificar esses títulos como “realistas” na medida do possível.
Não temos dragões, espadas, espingardas para atirar em zumbis. É um jogo de gente sobre gente e, em virtude disso, é muito mais difícil fazer com que o jogador se conecte com os personagens e se importe de fato a ponto de querer saber mais sobre eles.
Outra coisa incrivelmente difícil de ser feita, e que Rue Valley faz muito bem, é amarrar as subtramas. Praticamente todos os personagens estão relacionados uns aos outros, e é interessante desvendar mais sobre suas histórias, ainda mais considerando que algumas envolvem mágoas que foram nutridas ao longo de anos.
O último jogo que me fez refletir tanto sobre a vida foi Harold Halibut, e é fantástico se deparar com outra obra que consegue tocar na alma apenas um ano depois. Mas nem tudo são flores. Rue Valley é inspirado em Disco Elysium; logo, você consegue imaginar a quantidade gigantesca de textos que o jogo apresenta.
Infelizmente, o game não conta com localização em PT-BR, o que se configura como um grande impeditivo para que vários jogadores brasileiros tenham esse contato com o game.
Elementar, meu caro Harrow
O sentimento de jogar Rue Valley é similar ao de jogar um título de investigação. Durante os loops, precisamos andar por aí conversando com as pessoas, coletando pistas e, eventualmente, resolvendo seus problemas.
Como mencionei acima, a personalidade de Harrow impacta diretamente na jogabilidade. Se ele for tímido, por exemplo, não será possível conversar com certos NPCs. Contudo, nem tudo está perdido. Existem várias formas diferentes de progredir em certas tarefas e, obviamente, ir desvendando o loop.
A timidez pode ser resolvida ao beber uma dose de whisky, deixando Harrow mais desenvolto e disposto a conversar com estranhos. Esse flerte com o gênero immersive sim torna tudo fantástico e ainda mais realista. Como mencionei no texto, gerenciar o tempo é vital para extrair o máximo de um loop.
Para exemplificar, existe um rancho com uma mansão trancada. Você pode ficar insistindo na opção de abrir a porta, fazendo com que Harrow a arrombe com murros e chutes. Após realizar a ação pela primeira vez, ela se torna “gravada” para os próximos loops. Você não precisa ficar constantemente descobrindo as coisas, e isso é um ponto positivo fortíssimo.

Contudo, no caso dessa abordagem, arrombar a porta consome vários minutos (lembre-se, você só tem 47 minutos) e o pior de tudo: ela machuca Harrow. Como ele faz um grande esforço físico para arrombar a porta, ele fica com o pé machucado, prejudicando a mobilidade e consumindo mais minutos. Em virtude disso, precisamos encontrar uma forma mais rápida – e menos dolorosa – de abrir a porta.
O loop (rs) do jogo é praticamente esse: coletar pistas, que são organizadas em um mapa mental. Após ter conexões o suficiente, desbloqueamos o que o jogo chama de Intenção. No caso da porta acima, a intenção que fica desbloqueada é “Ache um jeito de abrir a porta mais rápido”. Só que para conseguir resolver essas Intenções, que são basicamente “problemas” do mundo ou dos personagens do jogo, precisamos de pontos de inspiração que são alocados nessas Intenções.

Os pontos de inspiração são uma espécie de pontos de ação de um cRPG. Eles podem ser obtidos através de diálogos e interações no cenário, como ler um cartaz e refletir sobre algo. Um aspecto fantástico de Rue Valley é que o mundo do jogo é altamente imersivo. Para ajudar a perceber quais objetos são interativos, é possível segurar o botão (R2 no PS5) para acionar uma espécie de “visão de detetive”. Isso ajuda demais em momentos em que o jogador fica empacado sem saber como progredir na história.
Uma masterclass de charme
Rue Valley é incrivelmente lindo. O game tem um visual que lembra uma revista em quadrinhos. As duas maiores inspirações estéticas do jogo são Disco Elysium – título que serve como exemplo em outros segmentos – e Spider-Man: Into the Spider-Verse.
Esse estilo visual é chamado de arte parallax. A técnica basicamente cria uma ilusão de profundidade, fazendo com que os elementos de fundo se movam numa velocidade menor do que os elementos de primeiro plano, nesse caso, o personagem.

Mas essa técnica, por si só, não faz milagre. Todo o charme de Rue Valley reside numa direção de arte muito bem pensada, ajudando e muito na imersão da trama. É quase como se a cidade fosse um recorte praticamente perfeito de seus habitantes e seus segredos.
Cada parte do cenário tem um aspecto noir, reforçando o senso de investigação e aspereza das pessoas que ali se encontram. Esse clima investigativo é reforçado por uma trilha sonora que consegue evocar bem a melancolia, ansiedade e traços de esperança que o jogo busca explorar em sua narrativa.
Review de Rue Valley – Vale Muito a Pena
Rue Valley é uma surpresa fantástica em um ano que, para mim, é o melhor da geração para indies até o momento. Os personagens são tão bem escritos que é difícil acreditar que eles não são reais, o mundo do jogo, as conversas de Harrow consigo mesmo… É difícil não ser sugado pela trama concebida pela Emotion Spark.
O curioso é como se o jogo nos deixasse presos em um loop, sedentos para desvendar cada peça do quebra-cabeça da cidade e ver o final da história.
Se você é um adepto de títulos com um foco quase total na narrativa, considero Rue Valley como um jogo praticamente obrigatório. Você dificilmente vai se arrepender! O único defeito que encontrei é não ter legendas em nosso idioma. Isso causa um grande impacto, visto que é um game com uma quantidade gigantesca de textos.
Rue Valley é uma obra especial que exala identidade e genialidade. É difícil não se encantar com a cidade do jogo e seus personagens, e ficar extremamente ansioso para desvendar o loop.
Pontos Positivos
- Personagens muito bem escritos
- Subtramas se entrelaçam de forma genial
- Mundo belíssimo e altamente interativo
Pontos Negativos
- Sem PT-BR
- Alguns diálogos não possuem dublagem
- História
- Jogabilidade
- Desempenho
- Visuais
- Som
